sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Broadbent bate o martelo

O mais britânico dos enólogos ingleses, Michel Broadbent sempre foi considerado um gentleman. Durante décadas, até 1992, comandou com rigor o departamento de vinhos da centenária casa de leilões Christie's, fundada em 1766. Com diploma de Master of Wine(é quando então a invejável sigla MW se liga definitivamente ao nome dessas sumidades do mundo do vinho),Broadbent sempre esteve às voltas com as melhores garrafas e muitas raridades. As quase seis décadas dedicadas ao vinho – calcula-se que tenha degustado perto de 100 mil rótulos – lhe garantiram uma festejada e alardeada expertise. Pois o último lance de Broadbent está sendo apresentado não numa casa de leilões, mas à Alta Corte de Justiça de Londres. O respeitável senhor de 82 anos entrou com um processo contra a Randon House, editora responsável pelo livro The Billionaire's Vinegar, de Benjamin Wallace (a tradução O vinho mais caro da história: fraude e mistério no mundo dos bilionários foi editada no Brasil pela Jorge Zahar). A tese sustentada por Broadbent é a de que o livro o retrata de maneira difamatória, como se fosse cúmplice de uma fraude. "Broadbent não pode desconsiderar o fato de que esteve no centro do que agora parece ter sido o maior embuste do vinho jamais perpetrado", escreveu Mike Steinberger, na revista Slate. O bem documentado livro de Wallace mostra em detalhes que os vinhos tidos como da adega do presidente Thomas Jefferson eram na verdade "fakes", fraude arquitetada por uma figura muito conhecida das celebridades e das degustações: o negociante alemão Hardy Rodenstock, dono do lote histórico. A principal garrafa que liga Broadbent ao escândalo foi leiloada na Christie's de Londres em dezembro de 1985 por US$ 156.450, um recorde. Afinal, tratava-se de um Château Lafite 1787, garrafa assinada pelo próprio Jefferson com um vistoso Th. J.. Malcom Forbes foi o desavisado arrematador e o transporte da garrafa entrou para o folclore da logística: o milionário preparou um assento especial de seu jatinho para a raridade. Outras garrafas foram vendidas pelo próprio Rodenstock e alcançaram o industrial norte-americano William Koch, que hoje o processa. Koch virou um caçador de fraudes do gênero. Foi o primeiro a suspeitar da autenticidade desses Bordeaux de Jefferson – há evidência de que as iniciais do presidente foram falsificadas com uma poderosa ferramenta. Rodenstock sempre tergiversou sobre a origem das garrafas. Antes do leilão na Christie's, um pesquisador de Monticello, onde estão os minuciosos registros feitos de próprio punho por Jefferson, alertaram Broadbent sobre a falta de menção às garrafas "achadas" por Rodenstock. Consta que Broadbent ignorou os alertas, tratou os Bordeaux como genuínos e pretendia coroar sua carreira com essas vendas históricas. O livro mostra esse Broadbent teimoso e vaidoso. A Slate registra que até mesmo o crítico Robert Parker pode ter sido vítima de Rodenstock. Numa degustação cheia de holofotes em 1995, o negociante apresentou a Parker uma magnum de Château Pétrus 1921. O vinho recebeu 100 pontos. Mas o próprio Château Pétrus se mostrou incrédulo: não há registros de garrafas magnuns em 1921.

www.slate.com/id/2224427/

www.winespectator.com/webfeature/show/id/40637

Diário do Comércio de 25/09/2009

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Vinhos têm alma?

As fotografias da cientista bioquímica Sondra Barret, com flagrantes da "alma dos vinhos", ganharam status de arte, foram parar em galerias e acabam de se perpetuar em livro: Wine's Hidden Beauty. Vale para as fotografias de Sondra a assertiva feita pelo matemático polonês Benoît Mandelbrot sobre as imagens de fractais que a partir da década de 70 tornaram-se populares e foram parar até nos balões de quadrinhos de Neil Gaiman. "A Geometria dos Factais não é apenas um capítulo da Matemática, mas também uma forma de ajudar os homens a verem o mesmo velho mundo de maneira diferente", escreveu Mandelbrot. É inegável que o mergulho profundo que Sondra faz em gotículas dos mais variados tipos de vinho, equipada com câmera e microscópios de última geração, pode ampliar nossa percepção desse universo, com suas intrincadas (e algumas vezes insondáveis) variáveis. O apelo estético nessa obras vivas do acaso ainda se sobrepõe ao que nelas existe de informação científica a ser decifrada. Mas o que há de errado se elas forem apenas motivos de contemplação? São como "jóias no vinho", elogiou o celebrado enólogo André Tchelistcheff (1901-1994), quando as primeiras fotografias vieram à luz. A busca da "sagrada expressão" do vinho virou uma obsessão. Sondra degusta como se deve e leva amostras de vinho para o laboratório, onde prepara lâminas e as fotografa com uma câmera acoplada a um microscópio especial, com dois polarizadores. As formas ficam por conta do "comportamento" das moléculas. As cores são resultado da combinação de luz polarizada e da refração da luz. Alguns nexos entre formas e a idade das amostras começam a ser descritos. Conforme o vinho vai envelhecendo, as estruturas moleculares passam a ficar maiores e mais complexas, escreveu Sondra na revista inglesa The World of Fine Wine. Em geral, do ponto de vista químico, os ácidos aparecem em formatos angulares. Apresentado a um "delgado e espinhento cacto", podemos estar diante de taninos de um grand cru Grands Echézeaux (Domaine de La Romanée-Conti) de quatro anos.

www.sondrabarrett.com/.../winebookpresaleletter.pdf

www.soulofwine.com/sitebuildercontent/.../barrettpalette.pdf

Diário do Comércio de 18/09/2009

domingo, 13 de setembro de 2009

O canguru-cometa da Austrália

A família Casella, que imigrou da Itália para a Austrália nos anos 50, hoje é só sorrisos e já pode fazer todas as graças com sua marca globalizada. Os vinhos [Yellow Tail], que trazem no rótulo o indefectível canguru de cauda amarela, estão associados igualmente a lagostas de rabo amarelo e mesmo cometas da mesma cor, disponíveis para download no site da companhia, num arquivo espirituoso: "fun". A felicidade também tem números. Em 2001, quando desembarcaram seus cangurus nos Estados Unidos, pegando a onda do vinho australiano de 1994, os Casella venderam 250 mil caixas de [Yellow Tail]. Em 2005, alcançaram impressionantes 8,6 milhões de caixas, graças à associação com uma das gigantes da distribuição nos Estados Unidos, a W.J.Deutsch and Sons. A vinícola Casella, na pequena vila de Yenda, sudeste da Austrália, é completamente diferente de tudo que se imagina sobre uma casa de vinhos. É uma grande fábrica que engarrafa cerca de 65 mil garrafas por hora e é capaz de estocar 60 milhões de litros de vinho. A sua produção total é de 11 milhões de caixas, sendo que 8,5 milhões têm destino certo: os EUA. Não é à toa, pois, que o [Yellow Tail] é peça exemplar de um dos capítulos do livro Wine Politics - Hoow Governments, Environmentalists, Mobsters, and Critics Innfluence the Wines We Drink, de Tyler Colman (University of California Press/2008), justamente o que trata da globalização do vinho. Pois o [Yellow Tail] é o retrato dessa padronização avassaladora e inquietante. Alguns analistas se divertem com o paradoxo: dizem que o vinho do canguru deu o salto para a América justamente porque não é vinho, ou melhor, é um vinho lapidado para o paladar americano. A chave do [Yellow Tail], escreveu o wine economist Mike Veseth, foi a descoberta de que vinho com pouquíssimo tanino e baixíssima acidez poderia ser muito atrativo, "especialmente para a maioria dos americanos, que realmente não gostam de vinho." A receita é fazer um produto sempre igual, sem surpresas para o consumidor. Inicialmente nas versões Shiraz e Chardonnay, hoje há garrafas com quase todas as principais varietais. A aridez na Austrália tem crescido com consequente queda de produtividade. Mas como terroir não é preocupação, os Casella não terão dúvida: farão seu [Yellow Tail] com uvas disponíveis em qualquer região do mundo.

http://discoveryellowtail.com/#/home/

Diário do Comércio de 11 de setembro de 2009

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Delicadezas do grande Vatel

Uma frugal laranja é servida a Luís XIV. O sol ainda não se pôs em Chantilly. A fruta parece inteira no prato, mas está descascada com perfeição. E pode ser aberta num átimo, virar serpentina, deixando à vista um conjunto de gomos perfeitos, sem fiapos, para a garganta do rei. Luís XIV se extasia com a criação de Vatel (1631-1671), mestre dos Prazeres e Festividades do príncipe de Condé, o anfitrião. A cena é apenas uma das dezenas de exuberâncias enogastronômicas tomadas pelo diretor Roland Joffé em Vatel, um banquete para o rei. Nesse filme de 2000, Gerard Depardieu, na pele de Vatel, deu corpo a uma personalidade detalhista, de poucas palavras, mas à frente de fornadas de criações, tanto nas cozinhas quanto nos palcos montados nos jardins de Chantilly. O príncipe recebia o rei e uma numerosa corte para um fim de semana de pratos requintados e taças cheias. Não puderam escapar, em meio aos excessos, da sensibilidade marcante, insinuante, de Vatel. Não caberiam aqui todos os menus. Mas um toque, como uma fruta caramelada, sim: na poética carta póstuma a Anne de Montausier (Uma Thurman), por quem se apaixonou, Vatel indica à amada os vinhos de Vaucluse que estariam em seu caminho, vinhos que trariam no bouquet o aroma dos frutos das cerejeiras plantadas entre os vinhedos da região. A vida de Vatel ganhou cor na ficção, recuperada graças a uma única carta, justamente de uma das testemunhas da sua genialidade na festa de Chantilly. Muito do que se pode inferir historicamente sobre ele foi reunido em Vatel ou La Naissence de La Gastronomie (Editions Fayard/1999). Outras delicadezas, entretanto, aparecem na pena de Alexandre Dumas. Num dos capítulos do movimentado Visconde de Bragelonne, Vatel é surpreendido por seu amo, Nicolas Fouquet, comprando vinho numa simples taberna, L'Image-de-Notre-Dame, em plena Place de Grève. Fouquet foi o todo poderoso Superintendente do Tesouro francês à época de Luís XIV, mais rico que o rei e amigo de poetas, escritores e pintores. Por um instante, Fouquet chegou a pensar que sua adega andava chinfrim. Vatel explica: "Está tão bem sortida sua adega que, quando algumas pessoas vão jantar em casa, não bebem." O despenseiro, continua Vatel, não tem, por exemplo, vinho para o paladar de Monsieur La Fontaine (o poeta das fábulas). Em casa de Fouquet ele não beberia porque não gosta de vinho forte. "Faço então o que tem de ser feito." O mâitre Vatel mostra a Fouquet Vin de Joigny. Sabia que pelo menos uma vez por semana vários dos amigos do amo batiam ponto no local para beber o tal vinho (que, dizem, não faltava na adega do rei). Estava justificada a compra. Vatel aproveita para contar outro segredo: tem abastecido a adega do patrão com cidra comprada na Rue Planche Milbray, já que é a bebida que Monsieur Loret consome em Saint-Mandé. À estupefação de Fouquet, Vatel completa: "Certamente esta é a razão dele comer com tanto prazer em sua casa". Fouquet gosta que Vatel trate dos convidados e amigos com a mesma distinção e carinho com os quais atende a vontades de duques, nobres e príncipes. E fala em dobrar o salário de Vatel. Para quê? Vatel logo murmura: "Ser recompensado por ter feito a obrigação é algo humilhante". Vatel trabalhou com Fouquet na casa em Saint-Mandé (onde todos os luxos privados eram permitidos) e o acompanhou depois ao castelo de Vaux-Castelas. O rei quis conhecer o local e foi recebido com banquete memorável, mas que acabou selando a sorte de Fouquet. Luís XIV gostou dos requintes à mesa mas não do exibicionismo do anfitrião – um súdito não pode ofuscar o rei, ainda mais um rei-sol. Logo mandou encarcerá-lo no castelo de Pignerol. De lá Fouquet só sairia morto, 16 anos depois.

www.classicreader.com/book/59/56/

www.provenceweb.fr/e/vaucluse.htm

Diário do Comércio de 4/setembro de 2009