sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Taças pela concórdia

A comezaina, como escreveu Eça de Queiroz, sempre foi também uma razão de Estado. Num de seus caprichosos textos, Cozinha Arqueológica, o escritor português conta que Catão fez decidir a última guerra púnica mostrando, aos olhos do Senado romano, a beleza e o tamanho dos figos de Cartago. Os ilustres Apícios (o mais famoso deles é autor do célebre De Re Coquinaria) foram cozinheiros oficiais "e formaram uma verdadeira dinastia" a serviço do Estado. A história tratou de registrar os grandes banquetes, reais ou não, cerimônias expoentes da vida pública das nações e seus dirigentes. Façamos um corte no tempo. No Brasil, a boa mesa diplomática tem rendido bons frutos ao País desde a implantação da "política de banquetes" (1907) capitaneada pelo Barão do Rio Branco e por Rui Barbosa em Haia, o que atraia os olhos (e as bocas) da comunidade internacional para o Brasil. É o que mostra o bem documentado livro A Mesa e a Diplomacia Brasileira – O Pão e o Vinho da Concórdia (Editora de Cultura/2008), do enólogo Carlos Cabral. O escritor teve acesso a documentos do Museu Histórico e Diplomático do Ministério das Relações Exteriores do Brasil – são mais de 6,5 milhões de papéis: fotografias, cardápios, seleção de vinhos, programas musicais, notas de fornecedores ... – e pôde contar a trajetória dessas recepções, desde os tempos de glamour do Itamaraty na então capital Rio de Janeiro até os dias mais austeros, mas não menos festivos, no Cerrado, modernidade presente. O livro trata das questões cerimoniais e de protocolo, dos elegantes serviços à mesa, dos bastidores dessas festas diplomáticas, dos grandes banquetes aos jantares mais íntimos. E os vinhos? Como especialista no assunto, Cabral, consultor do Grupo Pão de Açúcar e membro de uma série de confrarias internacionais, trata com atenção e propriedade da seleção dos vinhos. No início, “o serviço diplomático não podia contar com vinhos nacionais, que só começaram a ser produzidos entre nós em escala comercial algum tempo depois de 1875, ano da chegada dos imigrantes italianos à Serra Gaúcha”. A partir de 1910, conta Cabral, o nome das famílias ganharam os rótulos: Salton, Drher, Mônaco, Peterlomgo,etc. Assim, na mesa diplomática, durante muitos anos, reinaram vinhos portugueses e os franceses (principalmente Bordeaux e Borgonhas) que resistiam à viagem transatlântica. O vinho brasileiro chegou às recepções oficiais com Fernando Collor de Mello para delas não mais sair. Desde 2005 vinhos da Casa Valduga ganharam os cardápios do Itamaraty. "Os governos passarão, a democracia trará para os salões do Itamaraty brasileiros de norte a sul deste país-continente e eles, assim como nós, irão se orgulhar de ter o Itamaraty como guardião da nossa fidalga, simples e encantadora cultura”, conclui Cabral. Na viagem proposta pelo enólogo não é necessário passaporte diplomático.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Rótulo com bicho não é uma fria

Há quem diga que o pinguim-de-humboldt (homenagem ao naturalista alemão Alexander von Humboldt) é um dos mais elegantes entre as espécies que vivem nas regiões mais frias do Chile e do Peru. Pois não é à toa que o Humboldt foi parar no rótulo de um dos vinhos da PengWine, vinícola chilena do Vale do Maipo, só disponível em lojas selecionadas dos Estados Unidos e de Cingapura. Os enólogos e marqueteiros de plantão quiseram com a escolha associar a elegância do animal à da assemblage de cinco uvas diferentes: Cabernet Sauvignon (base), Merlot, Cabernet Franc, Malbec e Petit Verdot. Uma viagem. No início deste ano, uma colônia de pinguins dessa espécie debutou no Woodland Park Zoo de Seattle (EUA). E a PengWine e sua distribuidora local aproveitaram a deixa: para cada garrafa de Humboldt vendida, US$ 1 foi para os projetos do zoo. Na fila de vinhos com nomes de pinguins encontramos ainda: Gentoo, Royal, Magellan, Rockhopper e Fairy. Animais, mesmo aqueles que não fazem parte do seleto grupo de estimação, estão com muito prestígio no mundo dos vinhos. Há de tudo: hipopótamo, koala, bode, baleia, canguru (e ninguém bate a Austrália nesse quesito), sapo, lagarto, jacaré, hipopótamo, galo, carneiro... Uma pesquisa da respeitada ACNielsen mostra que aproximadamente um em cada cinco vinhos de mesa trazem no rótulo uma brincadeira, uma foto, um desenho representando um animal. Esses dados estão no REthink Wine Blog, que tratou de alinhar também alguns exemplos de vinícolas que seguem esse caminho, como a citada PengWine. Já a Mutt Lynch Winery, vinícola em Healdsburg, Califórnia, tem uma linha exclusiva dedicada aos amantes do cães. Seus proprietários patrocinam várias ONGs que trabalham no resgate de cachorros e outros animais abandonados. Já o jacaré foi parar num dos rótulos da James Arthur Vineyard, por causa de uma parceria com o Lincoln Children’s Zoo de Nebraska. Os vinhos com esses rótulos são muito bem recebidos e significam aumento nas vendas, explica Danny Brager, executivo da ACNielsen. E as qualidades do vinho, onde entram nessa história? Pois é, essas vinícolas querem muito mais falar é ao sentimento dos seus consumidores e se destacar nas prateleiras, entre os vinhos com rótulos tradicionais. Alguns especialistas americanos trataram de estudar a questão e descobriram que o consumidor tende a comprar mais um produto que reflete ele mesmo do que exalte o próprio produto.

www.pengwine.com

www.muttlynchwinery.com


Diário do Comércio de 16/10/2009

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Cálem, rótulos com afeto

A vinícola Cálem, com vinhedos em Cima Corgo e Douro Superior, centro de vinificação em São Martinho da Anta e caves em Vila Nova de Gaia, está completando 150 anos de fundação. É uma das poucas marcas criadas por portugueses que mantêm o nome de família original em seus rótulos (a Porto Cálem passou a fazer parte do grupo Sogevinus em 1998). Suas garrafas ainda trazem o desenho de uma caravela dourada, memória das antigas viagens do vinho do Porto pelo mundo. Mas houve época, principalmente na virada do século XIX para o século XX, em que a Cálem exibia rótulos especiais para conquistar mercados na América do Sul: Argentina, Uruguai e especialmente o Brasil. A pesquisadora Ana Duarte Melo, da Universidade do Minho, disponibiliza na internet um interessante estudo que mostra como essa conquista foi feita, "sem o etnocentrismo natural do conquistador", mas com vinhos nomeados "afetiva e culturalmente aos locais de consumo". O estudo de Ana Duarte organiza e analisa rótulos arquivados tanto no Instituto do Vinho do Douro e do Porto (IVDP) como na própria vinícola Cálem. "Gentil Mineira" e "Gentil Paulista" são exemplos acabados dessa política comercial. Há outros casos ilustrativos, como os rótulos do "Fraternidade", que estampam a monarquia portuguesa e a república brasileira entrelaçadas com suas respectivas bandeiras (mais tarde as garrafas abrigarão as duas repúblicas amigas também nos tragos). Mais específico ainda, o vinho "Bom Fim", com o desenho do seringal de mesmo nome no Rio Juruá, uma marca dedicada à exportação para o Pará. O grande salto de consumo brasileiro de Porto ocorre entre 1880-84, quando o país passa a importar fatia idêntica à do mercado britânico. Em 1880, o Brasil recebia 40% do total das exportações.

http://repositorium.sdum.uminho.pt/browse?type=author&value=Melo,%20Ana%20Duarte

http://www.calem.pt/

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Pinotage, como um Sol

Sheila Hlanjwa, à frente da vinícola Lathithá, é uma das grandes garotas-propaganda da uva Pinotage. Xhosa como Mandela, e orgulhosa dessa condição, Sheila é mais do que uma vinicultora sul-africana atenta à colheita e à preparação do seu vinho Pinotage, a cepa da sua terra. Ela mesma desenhou o rótulo para seu produto. Na verdade, a alegre Sheila é exemplo do sucesso de alguns projetos de inclusão social dos negros do país, até então personagens de uma conhecida história de marginalização. A política local conhecida como Black Economic Empowerment também alcançou a indústria do vinho. Em parceria com o governo, têm estimulado a participação de negros em postos-chave de vinícolas na região do Cabo. A meta da South African Wine Industry Trust (Sawit), organização que comanda essa política, é aumentar a participação dos negros, de 1%, em 2004, para 25%, em 2010. A Swit tem adquirido propriedades e vinhedos na região mais nobre do país e patrocina a educação de jovens enólogos negros, na Universidade de Stellenbosch. É emocionante vê-los recuperando a tradição da Pinotage, nascida em 1925, graças ao empenho de Abraham Izak Perold (1880-1941), grande professor de Enologia de Stellenbosch. Um ano antes ele fertilizara flores de Cinsaut com pólem de Pinot Noir. Nascia a Pinotage. No final dos anos 90, a cepa sul-africana corria o risco de extinção, conta o enólogo e escritor Peter F. May, grande entusiasta da uva Pinotage, em seu mais recente livro Pinotage - Behind the legends of South Africa's Own Wine (Inform& Enlighten/2009). De 1997, época em que May fundou The Pinotage Club, para reunir os amantes dessa cepa, a Pinotage representava somente 2% do total de vinhedos do país. Hoje essa porcentagem subiu para 6%, segundo o escritor, sem contar vinhedos espalhados pelo mundo, da California ao Brasil e Israel. Símbolo dessa retomada de preservação da cepa local é o novo vinhedo de Pinotage, cerca de mil mudas, plantadas em outubro de 2008 em 35 hectares em Mostertsdrift, campo avançado de pesquisa da Universidade de Stellenbosch. May escreve que o plantio das mudas foi feito de maneira radial, o que possibilitará estudos sobre o papel da incidência do sol. A Lathithá de Sheila também tem a ver com sol e renascimento. Lathithá significa aurora, em Xhosa.

http://pinotageclub.blogspot.com/

http://www.pinotage.co.za/

Diário do Comércio de 2/10/2009