sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Eleições de Saintsbury

O inglês George Saintsbury (1845-1933), depois de se educar em Oxford, dividiu sua vida entre o jornalismo e o ensino. Professor de literatura da Universidade de Edimburgo, produziu centenas de artigos e obras acadêmicas (entre elas Primer of French Literature e History of Elizabethan Literature). Mas entrou para a posteridade graças a um pequeno livro, Notes on a Cellar-Book, publicado em 1920, escrito aos 75 anos, já durante a aposentadoria – obra que reúne notas, menus, lembranças e opiniões tendo os vinhos de sua adega e inesquecíveis jantares como pontos de partida. A obra foi reeditada pela Universidade da Califórnia em 2008, agora com introdução de Thomas Pinney, importante estudioso do vinho nos Estados Unidos e autor de History of Wine in America. Notes on a Cellar-Book é a primeira obra do gênero escrita na Inglaterra, fundamental para quem gosta tanto de vinhos como de livros. Longe de um compêndio técnico, Notes... é um poético e curioso tributo à bebida que acampanhou Saintsbury durante toda a vida, desde os tempos de Oxford. Ele dizia que não havia dinheiro entre o que gastou desde que começou a ganhar a vida que lhe trouxe mais retorno do que o empregado nos líquidos relacionados no livro. O autor transita do Romanée-Conti a cervejas com muita tranquilidade. Mas há capítulos especiais para os grandes vinhos de sua época: Claret (Bordeaux), Champagne, Borgonha, Porto, Sherry e Madeira, todos comentados com seus nexos históricos. O relato sobre o Xérès que o acompanhou e a muitos londrinos do fim do século XIX é quase uma ode ao vinho "nem tão austero nem tão adocicado", "para todas as ocasiões". Não é à toa pois a homenagem feita pelo escritor André Simon, que fundou em Londres o Saintsbury Club. Seus associados se reúnem duas vezes ao ano, desde 1931 até hoje, para celebrar o seu grande patrono.

DC de 29/10/2010

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Verão de ceifadores em Colmar

O ataque ao vinhedo experimental em Colmar, na Alsácia, Nordeste da França, foi no início da noite de 15 de agosto. Tudo muito rápido, como descreveu o repórter Ben O'Donnel, do site da revista Wine Spectator. Não demorou nem 20 minutos para que cerca de 70 ativistas do grupo Les Faucheurs Volontaires (Ceifadores Voluntários) arrancassem e destruíssem 70 videiras, plantadas em área do Instituto Nacional Francês de Pesquisa Agrícola (INRA), na medieval cidadezinha de Colmar. O vinhedo era a base de uma pesquisa de sete anos, destinada a encontrar soluções para combater uma doença que ataca as videiras e tira o sono dos viticultores em várias regiões produtoras do mundo. Vermes microscópicos, os nematóides que vivem às custas das vinhas são vetores do vírus court-noué (fanleaf), que reduz o rendimento das parreiras, mata plantas, arruína o solo e pode dar origem a uma verdadeira praga. Com a destruição dos vinhedos de Colmar, perdeu-se parte importante de um projeto que já havia consumido 1,2 milhão de euros. No centro da polêmica a natureza dessas videiras, com suas raízes geneticamente modificadas, dotadas de genes resistentes ao vírus. Os ativistas do Les Faucheurs Volontaires lutam contra todos os alimentos geneticamente modificados (e contra o globalizado Carrefour também!). Segundo os ativistas, ainda faltam testes que mostrem sua inofensividade. Têm medo também que o vírus se torne resistente e/ou que as plantas modificadas acabem se alastrando para a vizinhança. Os cientistas garantem que a pesquisa é absolutamente experimental e faz parte de um projeto com várias outras alternativas de combate ao fanleaf. A Alsácia vem enfrentando problemas com seus belos vinhedos desde a Idade Média, quando estes foram enfileirados às margens do Reno. Muitas guerras e invasões foram motivadas também pelo terreno estratégico, arduamente disputado entre franceses e alemães. Numa outra direção, o imperador Napoleão Bonaparte simplesmente os repartiu entre amigos sem nenhum dom para esse empreendimento agrícola que requer muita dedicação. Recuperados no Segundo Império, os vinhedos foram dizimados com os prussianos de Bismarck, em 1870. Quem conta esse "vaivém França-Alemanha" é o jornalista e crítico Renato Machado em seu livro Em Volta do Vinho (Editora Globo/2004). Hitler chegou a anexar a região em 1940, Alsácia que voltou aos franceses no final da Segunda Guerra. A última investida contra os vinhedos foi essa promovida na cidadezinha de Colmar, onde o INRA tem seu vinhedo experimental – a Colmar da uva Riesling, que já foi chamada de gentil aromatique.É com ela que a Alsácia faz vinhos brancos que, como diz Renato Machado, são verdadeiras obras de arte.

http://www.inra.fr/

http://www.winespectator.com/webfeature/show/id/43586

Diário do Comércio de 22/110/2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Bordeaux, segundo ingleses

Os ingleses conhecem bem os vinhos franceses, principalmente os de Bordeaux. O crítico e historiador Hugh Johnson é um dos entusiastas mais respeitados, com obras de referência editadas em várias línguas, como seu inestimável atlas do vinho. É idealizador e consultor também de uma das revistas mais elegantes sobre a matéria, The World of Fine Wines, preciosidade com quatro edições anuais. Agora está às voltas com guias das mais importantes regiões vinícolas do mundo. Depois das obras sobre Champagne e Toscana, acaba de ser lançado The Finest Wines of Bordeaux (Aurum/2010), escrito por James Lawther, que vive na região desde 1995. As imagens são de Jon Wyand, fotógrafo que há mais de 30 anos viaja pelos vinhedos de todo globo. Bordeaux tem 118.900 hectares de vinhedos, 9.100 viticultores, que produzem um total de 640 milhões de garrafas por ano, segundo dados de 2008. Produção que vem caindo e se modificando nos últimos anos. Os rígidos parâmetros da classificação de 1855 estão sendo revistos a cada safra. Para Hugh Johnson, é preciso mostrar esse novo cenário: quem produz hoje os melhores vinhos, em quais distritos e châteaux, com qual tecnologia e, importante, com qual filosofia. James Lawther escreveu que suas escolhas são apenas "um microcosmo de Bordeaux", mas não tem dúvida de que refletem as práticas de vinicultores quem têm cuidado especialmente dos vinhedos, das frutas, mais do que aqueles que investem apenas em tecnologia ou em outra mania da viticultura do século XXI: as adegas em estado de obra de arte. Há nesse guia de Bordeaux, além dos perfis dos châteaux e de seus proprietários, uma introdução histórica que não esquece que Bordeaux já foi inglesa – de 1152, ano do casamento do futuro rei Henrique II com Eleonor da Aquitânia, até 1453, quando o rei francês Charles VII venceu John Talbot, comandante do exército inglês. Foram nesses séculos que o claret conquistou os ingleses. O vinho era presença marcante nas águas do Canal da Mancha e, diferentemente de hoje, tinha de ser consumido rapidamente.

DC de 15/10/2010

O tempo e o vinho em Matt Kramer

Os maiores vinhos não são grandes pelo poder que têm de nos subjugar, e sim por sua aparente infinitude. A frase é de Matt Kramer, que escreve sobre vinhos há mais de 30 anos e desde 1985 é colunista titular da revista Wine Spectator. A citação pode ser garimpada no livro Making Sense of Wine, de 1989, que ganhou no Brasil o título de Os Sentidos do Vinho (Editora Conrad/2007) – um clássico da literatura do gênero. Escritor de extensa obra, sempre com um coração na Itália, Kramer vive em Portland, Oregan (EUA). Acaba de lançar Matt Kramer on Wine (Sterling Epicure/2010), uma atraente coleção de colunas, ensaios e observações – textos que têm como fio condutor o tempo do vinho. "Tudo sobre vinho, especialmente o vinho fino, envolve o tempo", escreve Kramer. De certa forma avesso ao império efêmero das cotações (as safras se sucedem com novas e novas garrafas e a apreciação sempre tem o forte componente da memória individual), o autor selecionou justamente o material que venceu o tempo datado, em análises que privilegiam as circunstâncias perenes do vinho, como gostava de dizer Sérgio de Paula Santos. Kramer é sensível ao ritmo das estações e da produção – tempo que iguala o mais rico dos vinicultores ao mais pobre dos agricultores. Todos têm de esperar (e rezar). O autor gosta de outra ideia na mesma linha: se alguém quiser provar um grande vinho maduro, "terá de esperar trinta, quarenta, cinquenta anos necessários, não importando sua ambição ou conta bancária". "Somente o tempo pode fazer o vinho maduro". No campo da degustação, Kramer ajuda o leitor a lidar com um aparente paradoxo do vinho: a "infinita" complexidade de um item com destino (digamos, com tempo de vida) mais ou menos pré-determinado. Ele diz que a própria degustação do vinho precisa de tempo, de conversa e pode ser enriquecida com parâmetros herdados do conhecimento. Cursos de imersão? "Não funcionam". É fundamental "amadurecer". E para isso é preciso ler, viajar por regiões produtoras, experimentar vinhos não ranqueados, de uvas menos badaladas, ouvir a voz de viticultores, de enológos e até mesmo de críticos.

DC de 8/10/2010

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O guia amoroso de Laura Catena

Laura Catena é filha de Nicolás Catena, vinicultor que revolucionou o vinho argentino a partir dos anos 80, colocando-o nas mesas do mundo inteiro, graças a investimentos na busca de qualidade – determinação inspirada no ítalo-californiano Robert Mondavi (1913-2008) e seu império no Vale do Napa. Laura Catena é hoje uma espécie de embaixadora da vinícola do pai, Bodegas Catena Zapata, e grande representante da nova geração de produtores da Argentina. Apaixonada por sua Mendoza – dessa província com cerca de 1.500 vinícolas saem cerca de 70% da produção de vinhos do país – e pelos Malbec ali aperfeiçoados por gerações de viticultores desde o século XVIII, a mãe e médica Laura Catena divide o seu tempo entre o marido, seus três filhos, a sala de emergência de um hospital em San Francisco e seus próprios vinhos, sob a marca Luca. Ainda teve tempo de escrever um dos mais cativantes guias de vinho e da cultura gastronômica de sua terra: Vino Argentino (Chronicle Books/2010), lançado este ano nos EUA. “O vinho definiu minha vida”, escreve Laura, da quarta geração de uma família de vinicultores de origem italiana, baseada em Luján de Cuyo. Um dos ritos de passagem da criançada era a permissão descontraída para um gole de vinho tinto misturada à soda, que saia barulhenta de sifões implantados em garrafões de vidro colorido. O bisavô de Laura fundou a Catena em 1902. Aproveitou-se da escalada comercial proporcionada pela inauguração, em 1882, da ferrovia Mendoza-Buenos Aires, que fez da região o epicentro da indústria de vinhos da Argentina. Cem anos depois, foi a vez do pai Nicolás estudar o terreno de Mendoza como nunca, até chegar à conclusão de que o melhor terroir estava nos terrenos mais altos e mais próximos da Cordilheira dos Andes. Laura conta com detalhes essa história sem esquecer de outros produtores importantes da região. Ela também faz uma ode ao Malbec e ao asado , com dicas de restaurantes e mesmo boas receitas. Por que não tentar uma saltenha?


http://www.catenawines.com/

DC de 1/10/2010