domingo, 31 de julho de 2011

O valor do âmbar luminoso

Não acredite numa lista das "100 coisas a provar antes de morrer" se nas principais posições não estiver uma harmonização de ouro: um cálice de Sauternes e uma fatia de foie gras – combinação clássica no Périgord de Montaigne. Tem gente que até perde a cabeça quando se trata desse branco doce de Bordeaux, "raio de sol engarrafado", efetivamente superior quando saído das adegas do Château d'Yquem. O vinho dessa casa esteve presente nas mais glamurosas mesas do passado – Talleyrand mandava servi-lo nos banquetes da corte francesa para acompanhar o apreciado peixe rodovalho. E até hoje é ponto alto dos brindes diplomáticos e das boas mesas. George Washington, por recomendação de Thomas Jefferson, seu então embaixador na corte de Versalhes, mantinha garrafas de Yquem na adega. Napoleão, no auge da carreira, recebeu vários carregamentos da safra 1802. O sommelier e colecionador Christian Vanneque acaba de arrematar em leilão uma garrafa de Château d'Yquem de 200 anos por cerca de R$190 mil – o maior valor já pago por uma garrafa de branco. O Yquem, tão celebrado na literatura, é o rei dos Sauternes. A casa tem quatro séculos de tradição e desde 1999 integra o grupo LV.M.H. (leia-se Louis Vuitton). Durante dois séculos, entretanto, esteve sob os cuidados da nobre família Lur-Saluces. O conde Alexandre de Lur-Saluces, que esteve à frente da vinícola até 2003, adotou um rigoroso sistema de qualidade na vinícola, que coloca no mercado somente safras excepcionais. O Château d'Yquem – por onde passaram vários czares russos (contam que Stálin quis levar mudinhas para plantar em casa!) e que guarda no livro de visitas as iniciais do rei Afonso XII da Espanha – tem 125 hectares da sua área de 188 ha tomados pelos vinhedos. A propriedade tem à sudoeste o rio Ciron, cuja névoa é indispensável para o desenvolvimento do fungo botrytis. Os vinhos Sauternes são feitos a partir da botritização de uvas Sémillon, Sauvignon Blanc ou Moscatel. Atacadas pela Botrytis cinerea, os bagos apodrecem, perdem água, concentram açúcar e são transformados em vinho de excelência. A colheita manual é mais demorada, leva dois meses, já que o apodrecimento nos cachos ocorre de maneira irregular e muitas vezes é preciso voltar ao mesmo ponto da parreira. Em Yquem são empregadas 160 pessoas ("caçadores de fungo") para a tarefa de escolher as uvas no ponto ideal. Só dessa maneira, obedecendo o tempo da "podridão nobre", é possível garantir um mosto com teor álcool de 20°. Durante a Exposição Universal em Paris, em 1885, quando veio à luz a famosa classificação dos vinhos de Bordeaux, não houve surpresa em relação ao Château d'Yquem. Os vinhos brancos, todos da área de Sauternes – o que inclui as municipalidades de Sauternes, Fargues, Preignac, Bommes e Barsac – foram divididos em premiers crus e deuxièmes crus, com exceção de Yquem, "cuja supremacia foi reconhecida com a única e insuperável posição de premier cru supérieur", como registrou Richard Olney em seu livro de referência Yquem (Flammarion/2008).



DC de 29/07/2011

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Douro Boys, Young Blood

Vitivinicultores portugueses de uma nova geração estão pela primeira vez juntos no Brasil para uma tarefa que parece ter virado prazerosa rotina: divulgar os vinhos que produzem na região do Douro. O diferencial é que eles vêm para reforçar a imagem de um terroir de paixão – esse que abrange os parreirais ao longo do Douro (muitos organizados em históricos socalcos) e às margens de seus rios tributários entre Barca D'Alva e Régua – e não necessariamente para fazer propaganda competitiva entre suas garrafas. O grupo Douro Boys é constituído por João Ferreira (Quinta do Vallado), José Teles (Quinta de Napolés, Niepoort), Tomás Roquette (Quinta do Crasto), Cristiano van Zeller (Quinta do Vale D. Maria) e Francisco Olazabal (Quinta do Vale Meão). Estão reunidos desde os anos 90 com o objetivo de promover o vinho de qualidade do Douro, esse que ultrapassou as fronteiras do Porto. A trajetória vitoriosa do vinho do Porto tem início quando os ingleses, às turras com a França, o elegeram como substituto à altura do Claret, em 1670. Os Douro Boys estão fazendo uma "revolução tranquila", dizem, querendo indicar que buscam a renovação desses vinhos seculares, respeitando as características da viticultura da região. Um dos tributos é feito às variedades portuguesas, loas às "top five" Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Cão e Tinta Barroca. Reverência que não os exime de investimentos em tecnologia. Os Douro Boys também são claros ao afirmar que não desprezam os estilos de cada uma das casas. A Quinta do Vallado, com vinhedos nos dois lados do rio Corgo, aparece em documentos desde 1716. Séculos depois, adapta-se ao enoturismo, com manutenção de um charmoso country hotel. Em 1818, a propriedade foi vendida para António Bernardo Ferreira e hoje os 70 hectares de vinhedos estão nas mãos da sexta geração de empreendedores da mesma família. A Quinta do Crasto é ainda mais antiga, de 1615, com vinhedos localizados na margem direita do Douro, a meio caminho entre Régua e Pinhão. A propriedade recebeu investimentos para sua modernização que possibilitou o salto do tradicional Porto à vinificação de reconhecidos tintos, em blend de Tinta Roriz e Touriga Franca. Esse espírito de entusiasmo com os vinhos de sua terra é o mesmo que norteou jovens de Rutherglen, na Austrália, reunidos no grupo The Young Bloods, (este sim nome verdadeiro de uma banda de rock). Trabalham para promover seus vinhos e para atrair uma nova geração de apreciadores da bebida. Objetivo perseguido, na França, por jovens herdeiros de châteaux, que se juntaram para outra revolução sob o sugestivo nome de Bordeaux Oxigène.

www.douroboys.com
www.newbordeaux.com/documents/bordeaux_oxygene.html
www.rutherglenvic.com/whatsnew_more.asp?whatsnewID=34

DC de 22/07/2011

domingo, 17 de julho de 2011

A biodinâmica de Coulée de Serrant

O cartão de visitas do francês Nicolas Joly, do vinhedo Coulée de Serrant, em Savennières, no Vale do Loire, diz tudo: debaixo do seu nome está impresso "assistente da natureza, não vinicultor". Joly é hoje um dos nomes mais importantes da viniviticultura biodinâmica, aquela inspirada nas lições do filósofo e educador austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), que indicam uma nova forma de plantar, holística, que alinha o trabalho da terra com a força da natureza, da lua, das estrelas... A isso se somam técnicas de manejo sustentáveis. Seu livro Vinho do Céu à Terra (Vinum Brasil), publicado primeiramente em 1999, já foi traduzido em nove línguas, inclusive o português, ecoando suas ideias e experiências tanto nas regiões da Alsacia, Borgonha e Rhône, como em vinícolas da Califórnia (EUA). Savennières-Coulée de Serrant é uma da poucas propriedades que constituem elas mesmas uma appellation. Tem pouco mais de 6 hectares plantados principalmente com a Chenin Blanc, a uva de predileção e vocação do Loire. Os primeiros vinhedos foram ali plantados por monges cistercienses, no século XII. O monastério serve hoje de moradia de Joly. De Coulée saíram garrafas elogiadas pela sucessão de reis, de Luís XI a Luís XIV. Parte da história desse vinhedo é relatada com acuidade e fluidez pelo jornalista Robert Camuto em Corkscrewed - Adventures in the New French Wine Country (University of Nebraska Press/2008). Nesse livro, o autor traça um retrato da nova viticultura francesa, muito além dos grandes châteaux. Depois de um MBA na Universidade de Columbia e de atuar como alto executivo em bancos de Nova York e Londres, Joly resolveu tocar a propriedade que o pai havia adquirido nos anos 1960. Da experiência desastrosa, com o uso de herbicidas e muita química, passou em 1979 à agricultura biodinâmica, com uso de adubagem orgânica, de vacas, e manejo da terra com cavalos e arado manual, no lugar de trator. P.S.: A viticultura biodinâmica pode resultar em excelentes e cobiçados vinhos, como é o caso dos produzidos em Coulée de Serrant. O que não quer dizer que todos os biodinâmicos sejam melhores que os elaborados pelos métodos tradicionais.

http://www.coulee-de-serrant.com/

DC de 15/07/2011

segunda-feira, 11 de julho de 2011

A sede dos exilados de Montparnasse

A arte e a literatura devem muito da sua história ao ambiente de efervescência da Paris das primeiras décadas do século XIX, especialmente dos anos 20 aos 40, cujos personagens (de Picasso a James Joyce são mais de 250 nomes) não dispensavam as varandas dos cafés, dos bares, e as mesas dos restaurantes. A ebulição era estimulada pelos achados de Auguste Escoffier (1846-1935), chef, restaurateur e escritor que renovou as técnicas da culinária francesa e também pela retomada das casas vinícolas, no Entre-guerras. Muito já se escreveu sobre esse clima – o livro paradigma é Paris é uma Festa, de Ernest Hemingway, que chegou ao país em 1921. Um episódio, resgatado em Os Exilados de Montparnasse (Record/2009), de Jean-Paul Caracalla, dá nome aos tintos que foram combustíveis da época. Em carta ao poeta Ezra Pound, Hemingway conta uma viagem que fez à Côte D'Azur, com Zelda e Scott Fitzgerald. Ao chegar, em 1924, o americano estava terminando seu clássico O Grande Gatsby. Com um Renault sem capota, percorreram a paisagem deslumbrante da região sem perder uma só safra, entre Montrachet e Chambertin. Na viagem de volta, com muita chuva, paravam nos bares para se abastecerem. De garrafas. Hemingway escreveu que o amigo ficava excitado ao beber no gargalo. Hipocondríaco e como medo do que aquela roupa molhada poderia causar, Fitzgerald pedia conselhos ao "doutor" Hemingway, que receitava bons goles de Mâcon, vinhos produzidos no Mâconnais, na Borgonha. O refúgio boêmio desses artistas não era restrito a bares, o que não significava falta de bebidas. O eixo passara de Montmartre a Montparnasse, com uma sucessão de casas que reuniam tout-Paris, como La Coupole. O ateliê de Gertrude Stein era um dos festejados pontos de encontro, assim como duas livrarias. Uma delas, a Shakespeare & Company, de Sylvia Beach, era a embaixada da literatura inglesa em Paris – Sylvia lançou Ulisses, de Joyce. La Maison des Amis des Livres, de Adrienne Monnier, era uma biblioteca de empréstimo de obras clássicas e livros de poesia de vanguarda. Adrienne gostava da boa mesa e reunia artistas entre livros, jantares, queijos e vinhos. Não há que temer nem os molhos nem os vinhos, dizia, desprezando a tirania da silhueta.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Gentis frutos da terra dos mafiosos

Terras que até poucos anos atrás pertenciam aos mais sanguinários capi da máfia siciliana estão agora ocupadas por cooperativas sociais que produzem pasta orgânica, molho de tomate, azeite de oliva e vinhos das nativas uvas Nero D'Avola e Catarratto – símbolos da luta contra o crime organizado. As cooperativas, cujos vinhos trazem no rótulo Cantina Centopassi, são o braço agrícola do movimento anti-máfia Libera Terra, que em meados dos anos 1990 plantou raízes na cidadezinha de Corleone (a mesma que inspirou Coppola no seu O Poderoso Chefão) e depois se espalhou pela Itália. Depois de muita mobilização, em 1996 a Justiça italiana aprovou a lei que permite a "tomada" das terras dos mafiosos. Entre as propriedades "confiscadas" estão a de Salvatore "Totò" Riina, que agia sem piedade na Palermo dos anos 1980. Ele só foi preso em 1993, um ano após o ousado assassinato dos procuradores anti-máfia Giovanni Falcone e Paolo Borselini. Há também vinhedos da uva Catarratto que pertenciam a outros chefes da Cosa Nostra de San Giuseppe, Salvatore Genovese e Bernardo Brusca. A Centopassi começou a colher em 2006 em cerca de 70 hectares dos 600 ha disponíveis para a agricultura social. Já produz 200 mil garrafas por ano. Não são vinhos de butique, mas sim produtos vendidos a preços populares nos supermercados da região. O branco é um blend das cepas Catarratto, Grillo e Chardonnay, mas há também o 100% Catarratto, conhecido por sua leveza e toque floral. Já o tinto é uma mistura da Nero D'Avola e Syrah. Os mafiosos tinham terra por ostentação, para mostrar poder, não por apego ao terroir, explica Francesco Galiante, jornalista da Libera Terra, ao escritor Robert Camuto, que conta a história do movimento e da Centopassi no livro Palmento (University of Nebraska Press/2010). A Libera Terra comemorou, no início do ano, a indicação ao prêmio anual da importante revista americana Wine Enthusiast, na categoria "Inovador do Ano de 2010". Estar na lista dos cinco melhores empreendedores da vinicultura mundial é uma vitória desses sicilianos – venceu Alain Juppé, prefeito de Bordeaux.


http://www.cantinacentopassi.it/

DC de 25/7/2011

Com a boca no Etna

Respeitado pelos antigos gregos por ser a entrada para o mundo infernal, morada de deuses, o vulcão Etna impera com seu aparentemente eterno e ameaçador fio de fumaça na costa leste da Sicília. De tempos em tempos, mostra sua fúria espetacular, muitas vezes destruidora, derramando seu mar de cinzas e lava na vizinhança. "A impressão mais surpreendente que você leva do Etna é a de que os moradores locais parecem dar pouca importância ao vulcão que pode engolir seu mundo em minutos", escreve Robert Camuto, que promoveu recente jornada à Sicília para escrever Palmento – A Sicilian Wine Odyssey (University of Nebrasca Press/2010). Os ímpetos do vulcão, entretanto, não são menores do que os de obsessivos viticultores que manejam seus vinhedos, principalmente na face norte do Etna, em busca de um terroir embebido em lava e terra vulcânica. "O Etna é a Borgonha do Mediterrâneo", proclamou Marco de Grazia, que produz o rótulo Terre Nere. Graduado em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia em Berkeley, ex-importador de vinhos italianos para os EUA (empresa agora sob o comando do irmão), um dos sócios da bodega argentina Altos Las Hormigas, o americano De Grazia comprou 15 hectares em terraços abandonados no Etna e ali ergueu seu negócio. Faz parte da geração de jovens viticultores que há cerca de dez anos corre atrás do tempo perdido, centrando fogo no cultivo das cepas nativas: Cattaratto, Frappato, Grecanico, Grillo, Inzolia, Nerello Mascalese, Nero D'Avola, Nerello Cappuccio, Perricone e Zibibbo. Foram cerca de 100 anos de abandono da atividade na ilha, contabiliza De Grazia. Do alto de uma tese conspiratória, explica a decadência da viticultura siciliana: a inversão do eixo das políticas a partir da vitória dos piemonteses e a unificação da Itália, em 1861. De Grazia faz seu tinto com a uva Nerello. Acredita que a região ao redor do vulcão tenha nada menos do que 25 diferentes crus – ou seja, terrenos específicos que possibilitam uma "variedade extraordinária" de resultados. Os vinhos Terre Nere de De Grazia exploram essas possibilidades. São produzidas cerca de 100 mil garrafas por ano, com vinhos envelhecidos por 18 meses em barricas francesas. Está no Etna também, desde 2001, o "belga maluco" Frank Cornelissen, ex-montanhista, que faz o vinho Magma, elaborado a partir da Nerello Mascalese e da Nerelo Cappuccio. Cultivados em alta altitude, seus vinhedos escaparam da devastadora Phylloxera do final do século XIX. São apenas 10 mil garrafas, pintadas com caligrafias japonesas pelo próprio Frank. A receita? Esmaga as uvas com os pés, fermenta o mosto em ânforas de argila – isso mesmo! – enterradas na terra de lava. E espera com paciência o tempo dos "ciclos cósmicos". Alguns críticos acham o vinho "selvagem" demais para ser bebido. Mas, exótico, algumas das garrafas alcançaram US$ 200 cada mundo afora.

DC de 1/7/2011