quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Cabeça de asno e Château Palmer 1864

A Paris de Napoleão III, com bulevares a La Haussmann (que sepultaram a cidade medieval), suas festas e bailes de máscaras, seusrestaurantes de alta cozinha e dos melhores vinhos, em nada anunciava o cenário de fome e penúria que se avizinhava. Isso pelo menos até que a guerra contra a Prússia fosse ficando mais próxima e próximo o cerco da cidade, em 1870. Para tentar garantir o abastecimento, monsieur Duvernois, ministro do Comércio de Napoleão, tratou de encher o Bois de Boulogne e algumas praças com milhares de ovelhas e bois, além de estocar grãos e capturar a caça das florestas da redondeza, matando dois coelhos com uma só cajadada: serviriam de alimento aos parisienses e deixariam as tropas de Bismarck à míngua. A carne de cavalo (essa que recentemente alcançou os jornais infiltrada nas lasanhas europeias) tinha sido introduzida pelos açougueiros de Paris em 1866 – “carne alternativa para o pobre”, mas que ganhou o paladar dos parisienses meio na marra após o cerco de inverno 1870-1871, explica Nichola Fletcher, em Charlemagne’s Tablecloth (St. Martin’s Press/NY/2004), No Les Halles – que sempre foi o “ventre de Paris”, na vívida descrição de Emile Zola – , não só a carne de cavalo, mas a nova charcuterie, agora equina, passaram a fazer sucesso. Poucos meses depois, entretanto, já não havia carne alguma e então entraram em cena os ganchos com destrinchados cães e gatos. Ratos também passaram a ser vendidos, moídos e transformados em recheio de tortas. Quando o inverno foi recrudescendo, foi a vez de “atacar” o Jardin des Plantes, o zoológico de Paris, confiscando seus animais exóticos. Só não foram para a panela macaco, tigre, leão e hipopótamo, escreve Nichola Fletcher. Dois elefantes, camelo, urso, lobo passaram a ser ofertados nos açougues e até mesmo restaurantes e cafés foram obrigados a mudar os cardápios. A fome de carne enfim nivelava a sociedade parisiense, pelo menos no que diz respeito à matéria-prima. Pois o chef Choron, do restaurante Voisin, de clientela requintada, preparou a ceia de Natal daquele 1870 com a carne disponível, sem perder a pose. No menu,Le civet de kangorou, Consommé d’éléphant, La terrine d’antilope aux truffes, Le chat flanqué de rats, e o Tête d’âne farcie que intitula esta coluna. Segundo a pesquisadora, para "engolir" esses pratos todos foram servidos Mouton-Rothschild 1846, Romanée-Conti 1858, Château Palmer 1864 e um vinho do Porto de 1827. DC de 1/3/2013

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Um Bukowski na Austrália

Philip White tem desmistificado rankings, concursos e o mercado de vinhos da sua Austrália com a mesma verve que o célebre chef Anthony Bourdain usa para escancarar os bastidores das cozinhas mundo afora. Crítico da enxurrada de releases e do poder dos grandes conglomerados de vinho, White tem a mesma certeza de Bourdain, a de que o peixe de segunda-feira não é o que parece, é sempre o de sexta. Ele é tratado como uma espécie de Charles Bukowski entre os escritores de vinho de seu país, um beat tão poético quanto ferino, que alimenta o blog Drinkster a partir do Vale do McLaren, tradicional região vinícola no Sul da Austrália. O que não pensar de um blogueiro de vinhos que abre sua página com uma citação do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002)? "O gosto é, em primeiro lugar, desgosto – aversão e intolerância visceral ao gosto dos outros". Inquieto e intenso "aussie", White também é incensado como um Rimbaud e bem poderia ser tratado como um Jim Morisson, tanta música e poesia mistura no seu alternativo blog. Que outro escritor trataria um vinho como "um boi almiscarado com mau hálito e bunda suja"? "Recuso-me a esconder" é um dos seus motes. Ao descrever uma competição das melhores garrafas da Austrália, celebra os reis-vinicultores coroados (literalmente), seus anfitriões do Vale do McLaren, mas pergunta: por que as informações sobre as degustações e votações não apresentam também dados sobre os perdedores? Como a dizer que há vinhos sem medalhas muito bons que caberiam com mais facilidade no bolso e na goela dos consumidores. Ou ainda, numa outra ponta mais cruel, que há zurrapas que devem ser mesmo evitadas. O Vale do Mclaren, que serve de primeiro e grande cenário a Philip White, foi colonizado pelos ingleses a partir de 1839 e já tinha vinícolas em operação uma década depois da conquista. Hoje há no McLaren cerca de 90 pequenas vinícolas, a maioria familiares, algumas caprichosas com seus vinhos de boutique. Perto de 50% dos vinhedos tem a uva Shiraz como estrela (3.218 ha), mas há viticultores dedicados à Cabernet Sauvignon, Chardonnay e Grenache. Drinkster é todo ele pontuado com cartoons de George Grainger Aldrige, na melhor tradição de Ronald Searle. Estes desenhos sozinhos já valeriam uma viagem ao blog de Philip White. Diário do Comércio de 22/02/2013

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Jancis Robinson e as uvas

O novo livro da crítica inglesa de vinhos Jancis Robinson, Wine Grapes (Ecco, 2012), tem 1.280 páginas e pesa mais de três quilos. Nessa enciclopédia dos sonhos de todo apreciador de vinhos estão reunidas descrições detalhadas de nada menos do que 1.368 cepas de uvas em produção no mundo todo. Mas não só isso. Esta é a primeira vez que uma publicação do gênero vai fundo nas questões genéticas, com algumas bisbilhotices de DNA: a Pinot Noir é parente da Syrah, sabia? Catorze árvores genealógicas inéditas mostram a origem de cada uma das videiras e como as variedades se relacionam. E por que um apreciador de vinhos precisaria conhecer alguma coisa sobre mais de mil variedades, pergunta Alder Yarrow, editor do premiado site Vinography. E ele mesmo tem uma boa resposta: pela mesma razão porque gostaria de prová-las em suas taças. Lançada no final do ano passado, Wine Grapes rapidamente passou a ser obra de referência tanto para iniciantes como para especialistas. Tom Wark, do site Fermentation, não tem dúvidas em colocar a publicação na estante dos melhores livros já publicados sobre o assunto nos últimos 20 anos. Em obra anterior, de 1986, Jancis Robinson, que também é colaboradora da revista Prazeres da Mesa, já tratava de listar espécies, ciente da importância tanto do terreno como das variedades na produção dos bons vinhos. Sua primeira viagem por uma terra incógnita foi reveladora como atesta seu novo trabalho, que decifra ainda mais variedades. Jancis Robinson contou com a colaboração de Julia Harding e do botânico suíço Jose Voullamoz, especializado em DNA de videiras. DC de 15/02/2013

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Colecionadores proverbiais

Nem só de coleções de grandes garrafas gira o universo dos apreciadores de vinho. Há enófilos que se tornam também helixophiles, batizados com a palavra culta e específica que une paixão e espirais. Os helixophiles colecionam saca-rolhas, dos mais antigos, principalmente do século XVIII, a peças exclusivas e contemporâneas, assinadas por designers, e que – eureca! – , também conseguem abrir garrafas. A Christie’s de Londres, famosa pelos leilões de vinhos, duas vezes por ano também coloca no pregão saca-rolhas “safrados”. Alguns “viciados” se reúnem na International Correspondence of Corkscrew Addicts (ICCA). E há colecionadores-pesquisadores que editam catálogos ao estilo raisonné, como o The Ultimate Corkscrew Book (Schiffer Book/1999), de Donald A. Bull. Rótulos de vinhos também podem virar uma paixão (em que pese as operações nem sempre bem-sucedidas de desgrudá-los das garrafas). Alguns colecionadores os tratam com rigor historiográfico. Outros, como o inglês Peter F. May, gostam de reunir rótulos inusitados e bem-humorados. No seu pocket book Marilyn Merlot and Naked Grape (Quirk Books/2006), May põe lado a lado rótulos cultuados e provocativos da californiana Bonny Doon (Ceci n’est pas un Carignan é um clássico) e ingênuos como o Nero di Predappio, da Emilia-Romagna, com a estampa de Mussolini! Há também quem beba em provérbios, ditados e aforismos sobre vinhos e sobre sua lida. O engenheiro Carlos Moura, do Parque Tecnológico da Univap, em São José dos Campos, termina seus e-mails com o tão célebre quanto anônimo “Life's too short to drink bad wine”. Palavras que compõem uma filosófica fortuna crítica do dia a dia de vitivinicultores e consumidores da bebida. Muitas vezes pescadas na literatura, mais ainda nos registros de festas populares e de vindimas. José Roberto Whitaker Penteado, em seu alentado O Folclore do Vinho (Centro do Livro Brasileiro/Lisboa/1980) reuniu nada menos do que 200 provérbios brasileiros sobre vinhos, naturalmente herdados dos portugueses, sem contar outras tantas máximas de espanhóis e italianos. “Ao bom amigo, com teu pão e com teu vinho”; “Bebe vinho, mas não beba o sizo”; “Vinho a seis, cabra a três”; ”Quando vinho desce, as palavras sobem”. Talvez esse último provérbio seja a nossa versão para o clássico In vino veritas. Renzo Tosi, no seu rigoroso Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. (Martins Fontes/2010), organiza uma lista de ditados sobre o vinho, inaugurada com a sempre presente máxima: “No vinho, a verdade”. Se não há menção literal desse ditado em nenhum autor latino clássico, Renzo explica que há paralelos entre vinho e verdade tanto em Horácio quanto em Plínio. A conhecida versão, traduzida em praticamente todas as línguas do globo, foi difundida a partir da Idade Média. In vino veritas ganhou as letras de Rabelais e batizou parte de um estudo de Kierkegaard sobre o caminho da vida (1845), aquele que trata de cinco convivas de um banquete, que abrem a alma sobre o amor. “O que permanece no coração do sóbrio está na língua do bêbado”, registrou Plutarco. DC de 8/02/2013