quinta-feira, 25 de julho de 2013

Na Umbria, de Lamborghini.

Os vinhos da Umbria já conseguem brilho próprio, saindo da sombra da sua exuberante vizinha, a Toscana. A viticultura nessa região conhecida como "coração verde" da Itália é uma tradição tão antiga quanto os etruscos, garantida pela qualidade do seu solo. Os monges beneditinos também gostavam desse terreno calcário e arenoso, que séculos depois, a partir dos anos 1930, passou a abrigar vinhedos e oliveiras a perder de vista, estas nas colinas de Assis e Spoleto. Hoje, graças ao empenho de jovens empreendedores e também ao microclima muito parecido ao da Toscana, a Umbria conseguiu status DOCG (Denominazione di Origine Controllata e Garantita) para duas regiões, com seus vinhos top Sagrantino di Montefalco e Torgiano Rosso Riserva. Além desses vinhos de altíssima qualidade, há aqueles provenientes de 11 regiões DOC (Denominazione di Origine Controllata): Assisi, Colli Altotiberini, Colli Amerini, Colli del Trasimeno, Colli Martani, Colli Perugini, Lago di Corbara, Montefalco, Orvieto, Rosso Orvietano e Torgiano.Colli é a palavra italiana para colinas. Durante boa parte da sua história política e econômica, a Umbria esteve sob o peso de Roma, no Lazio, que é a outra região limítrofe (a Umbria também faz divisa com Le Marche). Já a Toscana, ao sul e a oeste, exercia sua influência cultural, onde entram as uvas e os vinhos. O enólogo Nicolas Belfrage acha que esses registros talvez sejam um pouco injustos com a Umbria. Afinal, ele escreve em The Finest Wines of Tuscany and Central Italy (Aurum/2009), "não era o mais influente cristão do segundo milênio, São Francisco de Assis, um homem da Umbria? " Belfrage também cita a riqueza de arte e cultura presente em cidades medievais como Orvieto, Todi, Spoleto e a capital Perugia. E pergunta por fim: "Não são a sagrantino, do lado das tintas, e a grechetto, do lado das brancas, as duas uvas mais interessantes da Itália? " Testes de DNA já mostraram que a sagrantino é uma uva autóctone da Umbria, sendo a variedade com mais concentração de taninos em todo o mundo. A cepa é estudada em minúcias graças principalmente aos esforços de Marco Caprai, que toca a vinícola fundada pelo pai Arnaldo Caprai, em 1971. A propriedade, que é líder na produção do Sagrantino de Montefalco, abriu parte de seus vinhedos aos pesquisadores da Universidade de Milão. Em nada menos do que 30 hectares da propriedade estão crescendo e se multiplicando 300 diferentes clones da sagrantino. Os DOCG Sagrantino de Montefalco são produzidos nas colinas de Montefalco, ao sul de Perugia, nas versões secco e doce (passito. A vinícola Adanti é outra casa bem avaliada pelos críticos e que encanta o mundo com seu passito. É da pequena vila de Torgiano o elegante DOCG Rubesco Torgiano - Vigna Monticchio, que só em anos de boa safra saem das adegas da família Lungarotti. Tocada hoje por duas herdeiras do fundador Giorgio Lungarotti, a propriedade produz cerca de 2,7 milhões de garrafas por ano, incluindo o seu Sagrantino di Montefalco. Já o Orvieto, elaborado com as uvas procanico (versão local da trebbiano) e malvasia, talvez seja o vinho mais conhecido internacionalmente, responsável por 80% dos vinhos DOC produzidos na Umbria. A vinícola Barberani, em Baschi, é uma das mais bem cotadas, apresentando ao mercado seu cru Castagnolo (50% grechetto, mais procanico, chardonnay, vermentino, verdello e riesling). A beleza da paisagem da Umbria chamou a atenção de Ferruccio Lamborghini (1916-1993) nos anos 1970. Numa de suas férias, o construtor de eficientes tratores e reluzentes máquinas esportivas, resolveu adquirir 100 hectares entre o lado sul do Lago Trasimeno e a vila medieval de Panicale. Hoje a família administra, sem limite de velocidade, um campo de golfe, uma fazenda de agroturismo e 32 hectares de vinhedos, com destaque para as uvas sangiovese e merlot. Seus rótulos IGT (Indicazione Geografica Tipica) são o Trescone, Torami, Era e o mais conhecido Campoleone (50% sangiovese e 50% merlot).

quinta-feira, 11 de julho de 2013

'Soave' Harry's

O lendário e insuspeito Harry's Bar de Veneza, desde 1931 funcionando na Calle Vallaresso, a dois passos da Piazza San Marco, já recebeu em seu salão escritores, maestros, divas, cineastas, músicos, atores, cantores, coroados, e todo tipo de celebridade (incluindo espivetados turistas). Ali todos são tratados com elegância, principalmente aquela emanada do serviço impecável e da simplicidade dos bons ingredientes, tanto os usados nos famosos drinques quanto os que compõem seus pratos de resistência – filosofia defendida com rigor pelo fundador da casa, Giuseppe Cipriani. O compositor Arturo Toscanini esteve por lá em 1936, quando assinou o livro de ouro da casa, época da criação do disputado drinque Bellini, Prosecco encorpado com purê de pêssegos brancos. Hemingway era freguês de carteirinha e lá batizou de Montgomery "o mais seco e delicioso martini do mundo". O diretor Vittorio De Sica levava ao Harry's a netinha para um cinematográfico Risotto alla Primavera ("com arroz carnaroli, não o arbório"). Nos anos 50, a condessa Amalia Nani Mocenigo chegou ao bar e pediu a Giuseppe um prato de carne crua, rico em ferro, indicado por seu médico diante de uma anemia profunda. Giuseppe foi à cozinha e de lá trouxe finíssimas fatias de carne de boi, cobertas com um molho especial à base de maionese caseira, com traçado à la Kandinsky. Nascia ali o carpaccio, que ganhou esse nome em homenagem ao pintor veneziano Vittore Carpaccio (1460-1525), que em suas obras empregava fortes tons de vermelho. Um coleção de quadros de Carpaccio era exibida em Veneza à época da visita da condessa. Arrigo Cipriani, filho de Giuseppe, tem mantido o charme do Harry's, com sua decoração sóbria de madeira escura, os mármores cinzas do balcão, e certo clima art deco. No restaurante, "que é antes de tudo um bar", estão disponíveis dois vinhos da casa, escolhidos a dedo entre os produtores da região. Chegam à mesa em tradicionais garrafas de vidro e são responsáveis por 80% dos vinhos vendidos no Harry's. O Soave vem de Verona. O Cabernet Sauvignon, do Friuli. "Penso que as pessoas criam um pouco de fetiche em relação ao vinho", escreve Cipriani em The Harry's Bar Cookbook (Bantan Book/2006). Nesse livro, Arrigo conta histórias dos tempos de seu pai e abre segredos de todas as famosas receitas do Harry's, incluindo a do "molho universal" usado no carpaccio. Os garçons são orientados a fornecer a carta de vinhos apenas àqueles que insistem. Cipriani tem pavor dos comensais que pedem vinhos caros por puro esnobismo. Mas é claro que, "para quem sabe o que quer e está preparado para pagar por isso, nós temos uma relativamente pequena, mas cuidadosamente selecionada lista de vinhos finos", italianos e americanos (certamente em homenagem ao Harry que foi o primeiro sócio de seu pai e que lhe valeu o nome de Arrigo). Para acompanhar o emblemático presunto com figo, Arrigo sugere um Tocai (Jermann) ou um Chardonnay (Kendall-Jackson). Para a versão veneziana do Croque Monsieur (frito em óleo de oliva), Soave (Anselmi) e Chardonnay (Pindar). A sopa de cardo, segundo Arrigo, deve ser escoltada por um Chardonnay (Lungarotti) ou um Fumé Blanc (Valley Oaks Fumé/Fetzer). Para o Tagliolini con Tartufi, Barolo "Zonchera" (Ceretto) ou um Cabernet (Clos du Val). E para o seu famoso carpaccio, Arrigo? Um italianíssimo Vintage Tunina (Jerman) ou um vinho da americana Zinfandel (Fetzer). Diário do Comércio de 12/7/2013

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Uvas do jardim de Mandela

Contam que os olhos de Nelson Mandela se acenderam e logo aquele peculiar sorriso se agigantou quando recebeu, pouco depois de seu aniversário de 94 anos, a meia garrafa de The Parable. Mais ainda quando soube de toda empreitada para sua produção. Um ou dois goles de vinho doce era uma prática diária de Mandela às refeições, relata Joanne Gibson em artigo na The World of Fine Wines. Mas o daquela garrafa tinha um gosto muito diferente. O The Parable, afinal, era uma inédita homenagem a Mandela: tinha sido produzido com as uvas colhidas do jardim que ele próprio plantou na ilha Robben, a prisão de segurança máxima onde ficou encarcerado por quase duas décadas. Mandela havia revelado na sua autobiografia Longa Caminhada Até a Liberdade, que logo que chegou a Robben, ilha que fica a 11 quilômetros de Cape Town, tratou de pedir às autoridades permissão para plantar e cuidar de um pequeno jardim num dos pátios da prisão. Muito vento e pouca chuva eram um grande desafio, mas conseguiu colher naquele terroir inóspito pequenos tomates, pimentões e cebolas. Foi também ali, naquele restrito pedaço de terra, que Mandela escondeu outra semente – justamente os manuscritos de seu livro. Quando em 1982 foi transferido de prisão,de Robben para Pollsmoor, Mandela deixou o jardim por conta do amigo Elias Motsoaledi, como ele um dos grandes nomes do ativismo anti-Apartheid. Foi quando as sementes da "árvore de uvas" floresceram. Joanne Gibson conta que, durante uma visita turística à ilha, em 2005, o vinicultor sul-africano Philip Jonker e sua mulher depararam-se com as antigas parreiras, que cresciam "selvagemente" em diversos pontos da prisão. Nascia ali a ideia de produzir com uvas daquelas plantas um vinho em homenagem aos líderes políticos que cuidaram daquele "vinhedo" durante anos. Jonker, da vinícola Weltevrede, em Robertson Valley, primeiro venceu os obstáculos burocráticos, deixando claro que não havia na iniciativa nenhuma intenção de lucro próprio. Depois, venceu os problemas agrícolas. Numa primeira viagem de reconhecimento, em 2008, funcionários da sua vinícola identificaram no total sete parreiras. Ficaram abismados como elas puderam sobreviver ali, num terreno de conchas quebradas, com os fortes ventos do Cabo das Tormentas. Em outra visita de trabalho, foi a vez de podá-las. Em 2010, apareceram os primeiros cachos. Eram 94 no total, contou Jonker, mas nenhum deles sobrou diante da fúria de pássaros do oceano. Na safra seguinte, foram 228 cachos, protegidos com redes, mas todos eles também foram devorados pelos pássaros. A safra usada no The Parable é resultado da colheita de 2012. Foram pesados 180 quilos de uvas colhidas em Robben e cuidadosamente transportadas para as instalações da Weltevedre, a 200 quilômetros dali. Jonker comemorou ainda o fato do vinho ser lançado justamente nos 100 anos da fundação da ANC (sigla em inglês do Congresso Nacional Africano), em 1912, o partido político de Mandela. Além do The Parable, as uvas, de variedades ainda não identificadas, renderam o The Manuscript,feito no tradicional Méthode Cap Classique Brut (o espumante sul-africano). Além de Mandela, receberam a garrafa de 375 ml, o professor Jakes Gerwed, chairman da Fundação Mandela Rodhes, Ahmed Kathrada, chairman do Museu de Robben, e o presidente americano Barack Obama. Restaram só 13 meia-garrafas, que serão vendidas futuramente em leilões para arrecadar fundos para caridade. Circulou o mundo na semana passada uma fotografia de Obama visitando a cela onde Mandela esteve confinado. Da pequena janela, Obama tinha a visão do pátio e também do pequeno e florescente jardim plantado por Mandela. O nome de Mandela está ligado aos vinhos também por meio da vinícola House of Mandela, fundada por suas filhas em 2010. Há quem critique a iniciativa pela exagerada exploração da imagem de Mandela. Apelação na mesma linha da grife de familares, exoticamente batizada com o nome da autobiografia de Mandela. Diário do Comércio de 5/7/2013