quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Torrada, biscotto, madeleine

John Naughton, professor emérito de Public Understanding of Technology da British Open University, autor de From Gutemberg to Zuckerberg: What You Really Need to Know About the Internet, publicou na edição de 19 de outubro de 2015, no The Guardian (veja link abaixo) uma notícia que atinge a ideia cristalizada com a qual o mundo tratava “a mais poderosa metáfora da literatura francesa”: o bolinho na forma de concha, mergulhado numa xícara de chá, com o qual Marcel Proust (1871-1922) conseguia voltar a dias de sua infância em Combray. Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. (De No Caminho de Swann, em tradução de Mário Quintana) Pois antes da madeleine, a primeira versão de No Caminho de Swann, livro I de Em Busca do Tempo Perdido, tinha como recurso de expressão uma prosaica torrada. Segundo manuscritos divulgados na França, no primeiro rascunho, de 1907, a torrada com mel é que dispara o gatilho da nostalgia proustiana. Numa segunda versão, a torrada dá lugar a um biscoito. A famosa madeleine e seus pedaços embebidos em chá só ganharam seu lugar na história da literatura (e da gastronomia) na terceira versão do escritor. http://www.theguardian.com/books/2015/oct/19/proust-madeleine-cakes-started-as-toast-in-search-of-lost-time-manuscripts-reveal § Os biscoitinhos preferidos da nossa yorkshire Meg ficam guardados numa antiga lata de madeleines da Fauchon.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Nas taças de Canaã

Brad Whittington, texano filho de pastor e formado numa comunidade batista que sempre atuou com rigidez no combate ao consumo de álcool, analisa friamente em What Would Jesus Drink? - What the Bible Really Says About Alcohol (Wunderfool Press/2011) as citações bíblicas sobre o vinho. Faz questão de distinguir a letra do texto bíblico das regras de tradição, culturais, de cada igreja cristã. Para ele, uma coisa é condenar o consumo, como ele mesmo o faz, considerando as estatísticas dos estragos sociais relacionados ao alcoolismo ou ao abuso eventual das bebidas alcoólicas. Outra, muito diferente, é pregar a abstinência apropriando-se de citações e, principalmente, transformando o vinho bíblico em vinho sem álcool, sempre quando necessário na defesa de teses religiosas. O vinho e outras “bebidas fortes” aparecem na Bíblia (Velho e Novo Testamentos) em 247 citações, em referências negativas, positivas e neutras, estas muitas vezes simbólicas. Estou como vinho arrolhado, Como odres novos prestes a romper. Jó, 32:19 Whittngton diz que quase caiu de costas quando fez as contas e descobriu que 58% das citações eram positivas. “Eu nunca tinha ouvido um sermão positivo sobre o vinho e nunca esperava esse resultado”, escreveu. Também foi pego de surpresa ao detalhar os conteúdos. São 58 as referências nas quais o vinho aparece, sem qualquer condenação moral, como parte integrante do dia a dia da época de Jesus, e 47 as que tratam da abundância do vinho como bênção de Deus. Deveria eu renunciar ao meu vinho, que alegra os deuses e os homens (...) Juízes, 9:13 A maioria das 40 citações bíblicas negativas ao álcool condenam seu consumo excessivo. Não se embriaguem com vinho, que leva à libertinagem (...) Efésios, 5:18 A conclusão final de Whittington: “a posição das escrituras dá ênfase ao consumo moderado do álcool com um alerta contra a embriaguez”. E se há tantas alusões contra a embriaguez e pregação por abstinência, como pensar que nas mesas da época as jarras e as ânforas estavam cheias de suco de uva, como querem algumas igrejas? As ânforas da festa de casamento de Canaã, a do milagre da água transformada em vinho, certamente continham a bebida embriagante. O pastor Roberto Cruvinel, da Igreja Assembléia de Deus Pleroma, de São Bernardo do Campo, em outras circunstâncias, também teve a mesma reação de perplexidade de Whittington. Cruvinel disse certa vez, num programa de rádio, que tinha se convencido da natureza alcoólica dos vinhos bíblicos ao ouvir de Henrique Murachco, seu renomado professor de grego na Universidade de São Paulo, que a palavra oinos do texto bíblico em língua grega deve ser traduzida definitivamente por vinho, o que tem álcool.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Um recorte de Ernesto Weder

“Herdei” uma centena de livros sobre vinhos da antiga biblioteca de Ernesto Weder, um caprichoso enófilo que não escondia sua predileção pelos vinhos alemães. Eles apareceram um dia na casa de meu irmão, em Santo Antônio do Pinhal, e foram “desviados” com consciência de causa para minha casa. Dentre os livros, há uma preciosa coleção de guias de viagem de cada uma das regiões vitícolas da Alemanha, editada pela Seewald Verlag, em Stuttgart, nos anos 1980. Além de mapas rodoviários, essas edições contam com bonitos desenhos de vinhedos e propriedades na pena de Willy Schmitt-Lieb. A coleção de Weder também apresenta vários compêndios, dicionários e atlas da vitivinicultura francesa, principalmente de Bordeaux e da Borgonha. E certamente guias da Hachette. Ao folhear alguns desses livros, encontrei uma série de “pedidos” à Livraria Francesa, que documenta o grande interesse de Weder pela literatura do mundo do vinho, no início dos anos 1990, quando ainda não era tão fácil encontrar as novidades editoriais internacionais nas prateleiras. Mas me detive com especial interesse num pequeno recorte de jornal, já muito amarelado, provavelmente de uma edição da Folha de S. Paulo, no qual Weder anotou de próprio punho somente a data: 29/10/75. Seria da coluna social? Yan de Almeida Prado recebeu, fora do calendário da Pensão Humaitá, para almoçar, a viúva Herculano (Dona Gabi) de Almeida Correa, o conde Bernard e a condessa Antonieta de Bonneval, Anne Thérèse e João Scantimburgo. Foram servidos um Château Guiraud 1961 (Sauternes) e um Château Gevrey Chambertin (o vinho de Napoleón) 1947 e um Clos de Vougeot 1908.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Um Merlot do Brasil para Lettie Teague

Uma sugestão de presente a ser encaminhado a Lettie Teague, a sempre bem informada colunista de vinhos do Wall Street Journal: um exemplar do mais recente e abrangente guia Vinhos do Brasil, editado por Marcelo Copello, ou uma passagem aérea para que venha conhecer vinhedos, provar vinhos brasileiros (até os da uva Merlot) e conversar francamente com os competentes profissionais que os elaboram. No seu recém-lançado livro Wine in Words (Rizzoli/2015), Lettie Teague critica aqueles que, nos Estados Unidos, servem vinhos ruins e baratos em lançamentos de livro, aberturas de exposição, casamentos... O fato é que, ao constatar esse comportamento, acaba, por tabela, mostrando certo preconceito em relação aos vinhos considerados alcoólicos e de “few bucks” do Chile e “até mesmo” do Brasil. “Só pode ser para economizar”, escreve Lettie, certamente com um sorrisinho no rosto. Em outra passagem, a escritora é um pouco menos imprecisa e trata de um Merlot brasileiro servido no casamento de uma amiga (com elegância, Lettie escreve que não dará nomes). E resume: o livro, a obra de arte e o casamento são tão bonitos e interessantes em si mesmos que ninguém nota o que está realmente engolindo. Para completar: se o casal está tão feliz, não é o vinho brasileiro que vai atrapalhar...

terça-feira, 21 de julho de 2015

É preciso quebrar os ovos e os preconceitos

Naquele bistrô popular da Rue de Rivoli, a nossa omelette (à base de presunto e champignons) foi servida com um pichet de Côtes du Rhône. Omelete com vinho tinto? Pois é, alguns franceses fazem assim. E há aqueles que não encontram problema algum em harmonizá-la com Beaujolais, fiéis aos ingredientes das misturas.E para a frittata, tão italiana, aberta como uma pizza que leva ovos e batata? Chianti é a indicação local. Mas também vai bem com os outros vinhos feitos com a uva Sangiovese,que é a cepa de expressão Toscana. Essas combinações específicas, entretanto, parecem ser exceção à regra clássica, que traz ovos e pratos à base de ovos relacionados preferencialmente ao lado de vinhos brancos, com destaque para Champagne e Chardonnay. Um dos posts mais acessados deste blog Roda do Vinho trata de um livro da autora inglesa Elizabeth David (1913-1992), An Omelette and a Glass of Wine. A escritora levou à sua Inglaterra do Pós-Guerra muito da vivacidade da cozinha mediterrânea, celebrando a mesa regional francesa. Elizabeth, ao descrever uma mesa farta em Avignon, promoveu como ninguém a combinação de uma Omelette Molière (com queijos Gruyère e Parmesão) com os vinhos brancos Gewürztraminer, da Alsacia, e Meursault, da Borgonha. O livro What to Drink with What you Eat (Little Brown and Company/2006), da premiada dupla novaiorquina Karen Page e Andrew Dornenburg, relaciona uma série grande de combinações para os pratos com ovos. De maneira geral (onde entram as quiches, as tortillas espanholas, os ovos mexidos dos breakfasts), a harmonização passa pelos brancos da Borgonha, Champagne (especialmente Blanc de Blancs ou seco) e outros espumantes, além de Chardonnay (de preferência os frutados, nunca aqueles com barrica à mostra). Karen e Andrew também apontam como possibilidade de harmonização: Sauvignon Blanc ou Fumé Blanc, Pinot Blanc da Alsacia, além de rosés do Novo Mundo. Para as omeletes, a lista de possibilidades é ainda maior, calcada principalmente nos ingredientes que vão combinar com os ovos. Um branco da Borgonha dá os braços espetacularmente bem com uma omelete de lagosta, por exemplo, mas um Chardonnay não faria feio nesse passeio de frutos do mar. Um mexido de ovos com bacon e salsichas pode ficar especial com um Riesling. E para uma tortilla (onde há batatas fritas e cebolas) até mesmo um Jerez frio cai bem. E os ovos Foo Yung, de tradição chinesa, completíssimo com seus vegetais e carnes? Tente um Pinot Grigio, Pinot Gris e Viognier, relacionam os autores. Longe de qualquer frenesi dos modismos, Karen e Andrew pesquisaram muitas harmonizações possíveis, dando voz a respeitáveis chefs e sommeliers. O dia a dia dos restaurantes é, sem dúvida, uma boa escola, mas as experiências de cada um são muito importantes quando se trata de gosto. Quebrar ovos e preconceitos deve ser a regra da busca por harmonizações pessoais. O resultado do trabalho do casal mereceu o prêmio de livro do ano da IACP, sigla em inglês para Associação Internacional dos Profissionais de Culinária. É um guia prático, já na sua oitava edição, que tem como inspiração uma frase do editor, intelectual e crítico de vinhos italiano Luigi Veronelli (1926-2004): “O sabor de uma comida quase sempre revela a qualidade do vinho e a exalta. No sentido inverso, a qualidade de um vinho completa o prazer de uma comida e a espiritualiza”.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Gato Negro de abusado Tetra Pak

Cansado, o cavalo dobrou as patas dianteiras duas vezes – certamente nunca seria modelo de bravura para o bronze que Leonardo da Vinci desenhou para Sforza. Tampouco seria a mula alugada de Stevenson. Era um cavalo normal, cansado de montanhas e penhascos. De joelhos, diante de um dos abismos da Cordilheira dos Andes, implorando frescuras para o corpo em suores e exaustão, o cavalo quase arremessa e se desvencilha do cavaleiro medroso, talvez o mais medroso e inexperiente deles, entre a dúzia de uma caravana ao cristalino rio Diguillín. Uma jornada iniciada nas redondezas dos vulcões gêmeos que marcam Chillán, no Chile. Faz-se esse sacrifício de viagem de três horas, em montaria, em nome de uma perigosa beleza que desfila feito um filme, os carvalhos gigantes como protagonistas, alguns troncos caídos e retorcidos pelos caminhos desses extensos vales andinos. À sombra de grandes árvores, numa pequena clareira, o mateiro improvisa uma churrasqueira, o carvão acomodado em buraco no chão. Carnes são assadas como os chilenos das montanhas bem gostam e a longaniza de Chillán é homeanageada pelos guias do grupo – o melhor embutido de toda a região, herança da imigração de espanhóis no fim do século XIX e início do século XX. A longaniza é uma linguiça fina de carne de porco temperada com muitas especiarias. A casa Cecina Villablanca faz as suas desde 1900. Cabernet Sauvignon chileno, servido de abusados tetra paks, acompanha as carnes. Caixinhas de Gato Negro estão por ali, ao pé de uma árvore, orgulhosas, todas em pé, preparadas para os exercícios de beberagem. O vinho fica mais barato ao consumidor nessas caixinhas acartonadas e, aberto, tem até mais sobrevida. Falta o charme da garrafa, da rolha? Mas quem está preocupado com isso nesse cenário rústico, de comida no chão, onde o que importa é a roda de amigos e o cenário de maravilhas? Ao lado da churrasqueira corre o Diguillín, onde um pescador todo protegido do frio, botas altas de borracha, mostra no meio do rio bem raso como agir nas gélidas e azuladas águas de neve. E então há a truta mais que fresca que também pode ir dali direto ao braseiro.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Caça aos bonés e vinhos do Ródano

Em arrumação de livros na estante, saltou-me à mão Tartarin de Tarascon, que, ao lado de Cartas do Meu Moinho, é das obras mais populares de Alphonse Daudet (1840-1897). Daudet, escritor naturalista amigo de Zola e Gouncourt, retratou como ninguém os costumes dos franceses do sul, bom-humor e ironia brilhantes. Mas, já na epígrafe da primeira história, sabe-se que seus personagens vão desafiar qualquer fronteira, em nome do espírito de seu tempo: “Na França, toda a gente é um pouco de Tarascon”. Pois assim, Tartarin, nas manhãs dos domingos ensolarados, aprumava-se para a caça, uma paixão dos tarasconeses. Mas o fato é que não havia mais caça em torno de Tarascon. (...) os campos desabilitados, os ninhos abandonados. Nenhum melro, nem uma codorniz, nem o menor láparo, nem a mais diminuta narceja. Até os bandos de patos selvagens em arribação desviavam-se de Tarascon. Havia por lá apenas um coelho matreiro, o “Rápido”, que nenhum caçador, nem o afamado Tartarin conseguia por na mira. O que faziam então esses caçadores nessas manhãs de domingo e de caça? “Oh!, meu Deus! Vão para o campo aberto, a duas ou três léguas da cidade, e se estendem pacificamente à sombra de um poço, de um velho muro, de uma oliveira, tiram da bolsa de caça um bom pedaço de carne, recheada, cebolas cruas, um salsichão, algumas anchovas, e iniciam um almoço interminável, regado por um desses belos vinhos do Ródano que fazem rir e fazem cantar.” Depois, quando estão bem “lastreados”, partem para a caça dos próprios bonés, atirados em festa para o alto. As ilustrações dessa minha edição são do genial impressionista alemão George Grosz. Uma delas mostra justamente a farra dos caçadores nas colinazinhas atraentes e perfumadas de alfazema de Tarascon.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Naturais, além da ideologia.

Uma chamada no Wall Street Journal vem bem a calhar quando o assunto são os vinhos tidos como naturais, que vêm ganhando espaço nas prateleiras de lojas e nas cartas das importadoras. Diz mais ou menos assim: os vinhos naturais têm de ser prazerosos e ir além da ideologia. O debate que se instalou, muitas vezes radical (leia o “manifesto” de Alice Feiring em The Battle for Wine and Love – or How I Saved the World from Parkerization/ Harcourt/2008), pode estar deixando de lado o gosto do freguês. Em outras palavras: não é só porque é natural, sem pesticidas, “bom para o planeta”, que é bem feito, que é bom. O raciocínio inverso também vale para os vinhos produzidos com métodos e recursos tradicionais, onde entram os sulfitos, por exemplo. Um artigo da colunista Letti Teague (que acaba de lançar Wine in Words: Notes for a Better Drinking, Rizzoli Ex Libris/2015) elenca os pontos mais sensíveis do debate, mostra os conceitos (sem consenso, mesmo entre produtores) existentes no mundo dos vinhos naturais, divididos ainda sem muita sutileza em orgânicos, biodinâmicos, veganos. A jornalista dá uma pequena lição de degustação de vinhos naturais: escolheu alguns rótulos e tratou de analisá-los, com consciência e coração. Preferiu os brancos. O artigo completo de Letti Teangue em: www.wsj.com/articles/SB10001424127887324436104578579650208883968 As posições polêmicas de Alice Feiring podem ser atualizadas no seu blog The Alice Feiring Line. www.alicefeiring.com/ Competente post do enófilo Luiz Cola, exaltando as diferenças, pode ser encontrado no blog Vinhos e Mais Vinhos. www.vinhosemaisvinhos.com/2010/09/vive-la-difference-os-vinhos-da-franca.html

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Museu do Trifulau

Respeitáveis e orgulhosos senhores e seus cães (algo conscientes de sua nobre posição nessa parte da Itália “enraizada” em trufas brancas) vigiam os salões do Restaurante Il Trifulau, em Calamandrana, no Piemonte. Estão pregados nas paredes nesse que também é um museu, Museu do Trifolau, museu do trufeiro. Pintados em retratos a óleo, esses senhores e senhoras fazem parte de um acervo que se espalha pelos vários ambientes e nichos da casa, entre prateleiras de vinhos, medalhas e troféus ligados a suas façanhas. São como sacerdotes preparando caminho para o culto à deusa Trufa d’Alba. O cicerone no Trifulau é Nino Bronda, que tem vinhedos na vizinha Nizza. A garçonete primeiro espalha pela mesa comprida, sem muita cerimônia, uma braçada de grissini, os palitos crocantes da panificação turinense, leves, confeccionados desde o fim do século XVII para ajudar na recuperação do jovem duque Vittorio Amedeo II de Savóia, os mesmos grissini que Napoleão chamava de petits batons. Logo depois dos palitos, a moça do Trifulau traz os pratos com o lardo translúcido, a fita de gordura suína que derrete na boca de italianos desde os romanos. O mais célebre dos lardos, com denominação de origem protegida, vem de Colonnata, norte da Toscana, depois de curado numa bacia de mármore de Carrara. Mas há também o apreciado lardo de Arnard, no Valle d’Aosta, igualmente protegido como iguaria local. Enquanto isso, Bronda derrama seus vinhos de Nizza, Monferrato, nas taças em prontidão, a começar de seu Barbera. Vai, sim, graças à boa acidez, combinar com a massa trufada do restaurante. Apresenta também outros vinhos da Cascina Conti Bronda: Dolcetto, 8 Filari California, Susy Düs (uva Moscato de qualidade, mosto parcialmente fermentado) e vinho de mesa da Uvalino, uma cepa em via de extinção no Piemonte. De presente, uma garrafa da sua grappa. Os retratados estão vigilantes à nossa reação e parecem balançar a cabeça diante da nossa aprovação. Outra sensação do Trifulau sai de um carrinho de queijos, onde cada pedaço escolhido é servido com perfumado mel. Almoço encerrado com requinte piemontês.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Vinhos bordados

Os madeirenses fazem poesia ao integrar, em um único instituto, bordado e vinho. Ilha portuguesa com 740 km² de extensão, a Madeira é a principal peça de um arquipélago atlântico composto também pelas ilhas Porto Santo, Desertas e Selvagens. O bom é constatar que a Madeira não caiu na tentação das burocracias tentaculares. Concentrou dois dos seus mais caros frutos em um único órgão, o Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM), que é responsável por sua promoção. Em recente newsletter do IVBAM, aos bordados acrescentaram-se flores e indicação de chefs locais (Elutérios Costa, da Estalagem Ponta do Sol; Júlio Pereira, do Hotel Choupana Hills, e Mariana Correia, do Restaurante Santa Maria). De um lado, temos o trabalho de 30 empresas e 3.000 bordadeiras que dão vida a linhos, sedas, cambraias, marcando-os com pontos precisos (Arrendado, Bastido, Folha Aberta e Fechada..), ofício que obedece a uma tradição secular. Os tecidos viajam ao campo, onde as bordadeiras moram e trabalham, e depois voltam às fábricas, principalmente para a capital Funchal, para a certificação. Uma feira de bordados realizada na ilha em 1850 marcou o início da comercialização desses bordados. No ano seguinte, foram mostrados na Feira Internacional de Londres e passaram a ganhar o mundo. O mesmo capricho das bordadeiras têm os produtores do vinho Madeira, ali produzido desde a primeira metade do século XV, apenas 25 anos depois da descoberta do arquipélago, em 1419. Até 1466, a cana era o principal plantio da ilha, mas a concorrência do açúcar brasileiro acabou levando os agricultores madeirenses a apostar no solo vulcânico da ilha com a plantação de mais vinhedos. A partir daí, o vinho Madeira seguiu as bem-sucedidas rotas comerciais dos séculos XVI ao XVIII, alcançando não somente a Europa, mas também as Índias e as Américas. Não é necessário dizer que os ingleses estiveram à frente das exportações, impulsionando os negócios desde os primeiros momentos da florescente indústria. Hoje a área vinícola da Madeira tem cerca de 400 hectares, com vinhas montadas em socalcos e em acentuados declives, que ajudam a compor uma paisagem idílica. Esse vinho único é feito principalmente a partir das castas Sercial, Verdelho, Boal, Malvasia, Tinta Negra, manejadas por centenas de pequenos viticultores. Já nas vinícolas, o vinho é preparado, envelhecido e engarrafado. (H.M. Borges, Vinhos Barbeito, Pereira de Oliveira, Justino’s Madeira Wines, Henriques & Henriques e J. Faria & Filhos são alguns dos negociantes respeitados.) A receita da fortificação do vinho Madeira precisa de cuidados de bordadeira, como garantia de perfeição e elegância. A interrupção da fermentação, para a adição do álcool vínico, tem de ser feita com precisão, de acordo com o grau de doçura que se pretende com o vinho. Madeira que pode ser seco, meio-seco, meio-doce e doce. Um dos métodos de envelhecimento, o de estufagem (há também o “canteiro”), é aplicado ao Madeira desde o século XVIII. O processo de “aquecimento” do vinho (hoje serpentinas ao redor das cubas de aço inox) foi criado para “imitar” os bons vinhos Madeira que em outros tempos viajavam o mundo, enfrentavam sol e balanço, e retornavam ao Funchal ainda melhores. Até hoje tem dado certo. O vinho cor de âmbar, licoroso, com clássico bouquet de caramelo, baunilha e frutos secos, em taça levantada por George Washington para brindar a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 4 de julho de 1776, era um Madeira.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Nas taças de Tio Sam

Qual país consome mais vinho no mundo, em volume geral? Os Estados Unidos vêm em 1º, com 3.269.238 mil litros - 13,02% de toda a produção mundial. A França, que perdeu o posto de primeira colocada em 2010 (consumo fortemente pressionado pelas campanhas de tolerância zero ao álcool na direção), aparece em 2º lugar, com 2.900.000 mil litros. A Itália segue a França, com 2.300.000 mil litros, mantendo certa estabilidade nos últimos anos. Os números são do Wine Institute, séria instituição americana que agrega cerca de mil vitivinicultores da Califórnia. São números estatísticos resultantes da compilação de dados regionais de 2012. Em 4º lugar no ranking de maior consumo geral de vinhos está a Alemanha, com 1.950.000 mil litros. A China vem logo atrás, com 1.773.700 mil litros. (O Brasil está em 14º lugar, com 382.000 mil litros.) A China é o único dos cinco primeiros países da lista no qual o consumo tem aumentado, coincidindo com os índices de seu crescimento econômico e da mudança de hábito de uma classe de endinheirados: de 2009 a 2012, o pulo foi de 56,8%. Mais em: www.wineinstitute.org/resources/statistics

terça-feira, 2 de junho de 2015

Onde está o vinho brasileiro?

Ben Carter, do site Snooth – Drink Great Wine, acaba de publicar um post com o título Brazilian Cuisine is Begging for Wine, que poderíamos traduzir, de maneira dramática, por A cozinha brasileira está “implorando” por vinhos. Carter tece loas à feijoada, às nossas coxinhas recheadas com frango (aquelas de todo bom boteco), ao variado e internacional churrasco, comidas que ele pode encontrar, com certa boa vontade, nos Estados Unidos. Já os vinhos brasileiros, alguns já resenhados no próprio Snooth, por conta de degustações esporádicas levadas por lá, são muito difíceis de achar naquele vasto mercado. E não estão nem na lista de muitos restaurantes de comida brasileira. Carter elogia a atual indústria vinícola do Brasil, que herdou tradição principalmente de imigrantes italianos, e hoje se moderniza como nunca, mas registra um dado que põe os empreendedores do ramo a pensar: o brasileiro consome, em média, um terço de litro de vinho por ano, mais ou menos metade de uma garrafa de 750 ml. Mais em: http://eat.snooth.com/articles/brazilian-wine-and-food/?viewall=1#ixzz3bFYsB4SG
JEAN GALVÃO : a partir de hoje, este blog passa a ser enriquecido com vinhetas inéditas do ilustrador e cartunista Jean Galvão.