terça-feira, 21 de julho de 2015

É preciso quebrar os ovos e os preconceitos

Naquele bistrô popular da Rue de Rivoli, a nossa omelette (à base de presunto e champignons) foi servida com um pichet de Côtes du Rhône. Omelete com vinho tinto? Pois é, alguns franceses fazem assim. E há aqueles que não encontram problema algum em harmonizá-la com Beaujolais, fiéis aos ingredientes das misturas.E para a frittata, tão italiana, aberta como uma pizza que leva ovos e batata? Chianti é a indicação local. Mas também vai bem com os outros vinhos feitos com a uva Sangiovese,que é a cepa de expressão Toscana. Essas combinações específicas, entretanto, parecem ser exceção à regra clássica, que traz ovos e pratos à base de ovos relacionados preferencialmente ao lado de vinhos brancos, com destaque para Champagne e Chardonnay. Um dos posts mais acessados deste blog Roda do Vinho trata de um livro da autora inglesa Elizabeth David (1913-1992), An Omelette and a Glass of Wine. A escritora levou à sua Inglaterra do Pós-Guerra muito da vivacidade da cozinha mediterrânea, celebrando a mesa regional francesa. Elizabeth, ao descrever uma mesa farta em Avignon, promoveu como ninguém a combinação de uma Omelette Molière (com queijos Gruyère e Parmesão) com os vinhos brancos Gewürztraminer, da Alsacia, e Meursault, da Borgonha. O livro What to Drink with What you Eat (Little Brown and Company/2006), da premiada dupla novaiorquina Karen Page e Andrew Dornenburg, relaciona uma série grande de combinações para os pratos com ovos. De maneira geral (onde entram as quiches, as tortillas espanholas, os ovos mexidos dos breakfasts), a harmonização passa pelos brancos da Borgonha, Champagne (especialmente Blanc de Blancs ou seco) e outros espumantes, além de Chardonnay (de preferência os frutados, nunca aqueles com barrica à mostra). Karen e Andrew também apontam como possibilidade de harmonização: Sauvignon Blanc ou Fumé Blanc, Pinot Blanc da Alsacia, além de rosés do Novo Mundo. Para as omeletes, a lista de possibilidades é ainda maior, calcada principalmente nos ingredientes que vão combinar com os ovos. Um branco da Borgonha dá os braços espetacularmente bem com uma omelete de lagosta, por exemplo, mas um Chardonnay não faria feio nesse passeio de frutos do mar. Um mexido de ovos com bacon e salsichas pode ficar especial com um Riesling. E para uma tortilla (onde há batatas fritas e cebolas) até mesmo um Jerez frio cai bem. E os ovos Foo Yung, de tradição chinesa, completíssimo com seus vegetais e carnes? Tente um Pinot Grigio, Pinot Gris e Viognier, relacionam os autores. Longe de qualquer frenesi dos modismos, Karen e Andrew pesquisaram muitas harmonizações possíveis, dando voz a respeitáveis chefs e sommeliers. O dia a dia dos restaurantes é, sem dúvida, uma boa escola, mas as experiências de cada um são muito importantes quando se trata de gosto. Quebrar ovos e preconceitos deve ser a regra da busca por harmonizações pessoais. O resultado do trabalho do casal mereceu o prêmio de livro do ano da IACP, sigla em inglês para Associação Internacional dos Profissionais de Culinária. É um guia prático, já na sua oitava edição, que tem como inspiração uma frase do editor, intelectual e crítico de vinhos italiano Luigi Veronelli (1926-2004): “O sabor de uma comida quase sempre revela a qualidade do vinho e a exalta. No sentido inverso, a qualidade de um vinho completa o prazer de uma comida e a espiritualiza”.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Gato Negro de abusado Tetra Pak

Cansado, o cavalo dobrou as patas dianteiras duas vezes – certamente nunca seria modelo de bravura para o bronze que Leonardo da Vinci desenhou para Sforza. Tampouco seria a mula alugada de Stevenson. Era um cavalo normal, cansado de montanhas e penhascos. De joelhos, diante de um dos abismos da Cordilheira dos Andes, implorando frescuras para o corpo em suores e exaustão, o cavalo quase arremessa e se desvencilha do cavaleiro medroso, talvez o mais medroso e inexperiente deles, entre a dúzia de uma caravana ao cristalino rio Diguillín. Uma jornada iniciada nas redondezas dos vulcões gêmeos que marcam Chillán, no Chile. Faz-se esse sacrifício de viagem de três horas, em montaria, em nome de uma perigosa beleza que desfila feito um filme, os carvalhos gigantes como protagonistas, alguns troncos caídos e retorcidos pelos caminhos desses extensos vales andinos. À sombra de grandes árvores, numa pequena clareira, o mateiro improvisa uma churrasqueira, o carvão acomodado em buraco no chão. Carnes são assadas como os chilenos das montanhas bem gostam e a longaniza de Chillán é homeanageada pelos guias do grupo – o melhor embutido de toda a região, herança da imigração de espanhóis no fim do século XIX e início do século XX. A longaniza é uma linguiça fina de carne de porco temperada com muitas especiarias. A casa Cecina Villablanca faz as suas desde 1900. Cabernet Sauvignon chileno, servido de abusados tetra paks, acompanha as carnes. Caixinhas de Gato Negro estão por ali, ao pé de uma árvore, orgulhosas, todas em pé, preparadas para os exercícios de beberagem. O vinho fica mais barato ao consumidor nessas caixinhas acartonadas e, aberto, tem até mais sobrevida. Falta o charme da garrafa, da rolha? Mas quem está preocupado com isso nesse cenário rústico, de comida no chão, onde o que importa é a roda de amigos e o cenário de maravilhas? Ao lado da churrasqueira corre o Diguillín, onde um pescador todo protegido do frio, botas altas de borracha, mostra no meio do rio bem raso como agir nas gélidas e azuladas águas de neve. E então há a truta mais que fresca que também pode ir dali direto ao braseiro.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Caça aos bonés e vinhos do Ródano

Em arrumação de livros na estante, saltou-me à mão Tartarin de Tarascon, que, ao lado de Cartas do Meu Moinho, é das obras mais populares de Alphonse Daudet (1840-1897). Daudet, escritor naturalista amigo de Zola e Gouncourt, retratou como ninguém os costumes dos franceses do sul, bom-humor e ironia brilhantes. Mas, já na epígrafe da primeira história, sabe-se que seus personagens vão desafiar qualquer fronteira, em nome do espírito de seu tempo: “Na França, toda a gente é um pouco de Tarascon”. Pois assim, Tartarin, nas manhãs dos domingos ensolarados, aprumava-se para a caça, uma paixão dos tarasconeses. Mas o fato é que não havia mais caça em torno de Tarascon. (...) os campos desabilitados, os ninhos abandonados. Nenhum melro, nem uma codorniz, nem o menor láparo, nem a mais diminuta narceja. Até os bandos de patos selvagens em arribação desviavam-se de Tarascon. Havia por lá apenas um coelho matreiro, o “Rápido”, que nenhum caçador, nem o afamado Tartarin conseguia por na mira. O que faziam então esses caçadores nessas manhãs de domingo e de caça? “Oh!, meu Deus! Vão para o campo aberto, a duas ou três léguas da cidade, e se estendem pacificamente à sombra de um poço, de um velho muro, de uma oliveira, tiram da bolsa de caça um bom pedaço de carne, recheada, cebolas cruas, um salsichão, algumas anchovas, e iniciam um almoço interminável, regado por um desses belos vinhos do Ródano que fazem rir e fazem cantar.” Depois, quando estão bem “lastreados”, partem para a caça dos próprios bonés, atirados em festa para o alto. As ilustrações dessa minha edição são do genial impressionista alemão George Grosz. Uma delas mostra justamente a farra dos caçadores nas colinazinhas atraentes e perfumadas de alfazema de Tarascon.